quinta-feira, 31 de julho de 2014

Reviravolta

A terça feira tinha começado leve. Sentia-me longe das preocupações dos últimos dias... Assim que Micaela partiu fui tomar um demorado banho e fazer minha barba. Fazia meses que não me barbeava sem ser num profissional do ramo. Nos últimos tempos estava acostumado a freqüentar barber shops das grandes cidades todas as semanas para manter aquela vasta barba sem pontas rebeldes e no tamanho ideal. Agora lá estava eu já de cara lavada, rosto de bebê, fazendo o nó da gravata como se fosse aquele garoto de vinte e poucos anos no dia da sua formatura...


Há dez ou onze anos atrás eu estava naquele mesmo apartamento que na época estava com o forro corroído de cupins, com as paredes com a pintura descascando, e móveis que eram dignos de brechó de quinquilharias. Aquele apartamento era o retrato exato de todas minhas mudanças e sucessos no decorrer desses onze anos.  Sentia-me bem naquele lugar. Era como se estivesse no meu reino. Apesar de não gostar da agitação paulistana, ao menos ali, naquele apartamento, me sentia tranquilo e relaxado.
Da época em que morei com Valéria e Bia neste endereço pouca coisa restou... Nem mesmo as paredes eram as mesmas. Vez ou outra ainda encontrava algum objeto delas em alguma gaveta ou alguma coisa que Bia fez questão de escolher numa reforma da decoração. Passei dois anos felizes ali com ela, antes de nos mudarmos para uma casa ampla, com vasto quintal e retirada do agito do centro de São Paulo. Visto que ela odiava morar em apartamentos tive que sair do meu reduto para satisfazer o capricho dela. Ela queria uma casa de estilo campestre, como aqueles velhos casarões ingleses habitados por aristocratas e seus criados. Era o sonho dela. Logo que ela engravidou nos mudamos para essa tal casa dos sonhos que ela tanto queria. Bia ficou extremamente feliz com essa casa e passamos bons momentos nesse novo lar. Embora estivesse começando a ter alguns problemas financeiros na empresa, não tinha como negar esse sonho que ela insistia em realizar. Ela comprou o terreno e eu usei os funcionários da empresa para realizarem o sonho dela feitos em pedra de taille. Uma casa enorme, espaçosa, com adega, cozinha ampla e com direito a um salão de jogos com bar, o qual muitas vezes era meu escritório quando trabalhava aos finais de semana. Ela pouco aproveitou seu sonho, sete meses depois o pai dela faleceria e ela entraria numa profunda depressão. Nem mesmo o nascimento de Ivan pareceu vencer o estado de melancolia que se instalou nela. Assim, aquela casa antes alegre e cheia de visitas se tornou uma grande casa onde Bia podia se esconder do mundo a sua volta. Com a separação ela voltou para o interior e eu para o apartamento.


Desde a nossa mudança quem passou a residir no apartamento foi Aline que na época ainda estudava e era minha assistente. Após a separação era irônico ela receber o dono do lugar como uma espécie de amante e hóspede. Passamos bons momentos juntos ali até que resolvi me mudar para Curitiba expandir os negócios. Aline ficou dois anos naquele apartamento sem mudar quase nada. A única coisa que mudou muito foi o perfume que ficava na casa que era o mesmo que ela sempre usava todos os dias. Quando ela chegava o seu perfume já antecedia sua chegada, quando ela saía o perfume deixava seu rastro.


Naquela manhã senti saudades do perfume de Aline e dos bons tempos com Bia naquele apartamento que agora era meu recanto exclusivo e às vezes solitário. Mas era uma solidão boa. Daquelas que refazem as energias entre um dia e outro. Terminei de dar o nó na gravata e saí tomar café no mercadão como nos velhos tempos. Neste dia não havia motivos para tomar mais uma vez café sozinho, ainda mais depois duma noite de prazer com Micaela que saiu às pressas naquela manhã atrasada para abrir sua loja.


Antes de sair, ao avistar um vaso de plantas sem regar, lembrei que tinha sido Bia quem havia comprado aquele vaso de plantas. Aquilo apertou no meu peito, pois me fez lembrar de quanto fomos felizes naqueles dias perdidos no passado consumado. Se por um instante Deus esquecesse de que somos marionetes de nossos próprios sentimentos e desenganos, e nos presenteasse com a possibilidade de retornar ao passado mudar algumas coisas, possivelmente voltaria para época em que havia deixado Bia, e ao menos, teria permanecido um pouco mais cuidando dela sem pensar tanto em mim mesmo. Por outro lado, eu já sabia que a vida nos dá o amanhã como uma chance de não cometer os mesmos enganos e erros do passado. Não havia porque lamentar... Apertei o botão do elevador e desci sozinho como se estivesse saindo do passado para o presente.



Quando cheguei no escritório a primeira ligação que recebi foi justamente de Aline. Ela estava furiosa com a decisão da reunião anterior a qual alterava as funções dela na empresa. Mesmo assim ela não se demitiu, apenas comunicou que estaria de volta no mês seguinte para retomar suas atividades apesar de aceitar aquilo com muitas objeções. No fundo ela não queria reconhecer a conduta displicente dela nos últimos meses. Tinha deixado de lado suas ambições profissionais, cursos e outros afazeres da empresa em constante atraso. Seus planos pessoais de gravidez e quem sabe me laçar num possível casamento tinham dominado a mente dela a tal ponto. Era a única explicação plausível para explicar as atitudes dela um tanto impensadas nos últimos tempos. Agora isso tudo era passado. O bebê perdido, o cargo de confiança perdido, tudo estava perdido, menos o emprego que ela tanto se gabava de ter : executiva de alto padrão e advogada empresarial. Toquei o dia adiante depois de ouvir as lamúrias dela...



Passei o restante do dia preso em reuniões. Quando saí do escritório já era noite, fui para o shopping ver Micaela que fechava o caixa. Após alguns minutos ali conversando sobre negócios e planos para aquela noite fomos para o apartamento. Degustamos uma garrafa de vinho e um fondue. Depois repetimos o script da noite anterior. Pela manhã ela saiu às pressas novamente e disse-me para ir buscá-la na natação naquela noite. Ela queria que eu fosse conhecer sua filha. Mal tive tempo de pensar numa saída para aquele convite surpresa e aceitei sem expor estar contrariado com aquilo. Pelo visto as coisas entre eu ela tinham andado depressa demais e aquilo começou a me deixar um pouco arrependido em ter levado as coisas nesse compasso.


Naquela quarta feira pouca coisa seria diferente dos outros dias. De manhã o trânsito fez mais da metade do pessoal se atrasar para uma reunião da construtora. Fiquei zanzando pelo andares dos escritórios conversando com este ou aquele que havia chegando discutindo sobre planos de participação nos lucros, projetos de obras, compras e vendas de imóveis. Nada muito sério apenas especulações rotineiras para saber duma novidade ou outra. Na hora do almoço quando já saia comer um belo prato de virado à paulista o médico de Bia me liga passando detalhes da situação clínica dela. Aquilo me fez perder o apetite. Voltei para o escritório e retorno a ligação ao médico - ele afirma que o caso é grave, pois se tratava nas suspeitas dele dum transtorno esquizoafetivo. Não tive nem tempo digerir a informação e saber pormenores. Estava atordoado com a notícia e com pena de Bia.
Dei uma volta no terraço fumei um cigarro e fui direto para uma longa reunião que durou boa parte da tarde. Finalizada a reunião saí caminhar um pouco espairecer, depois voltei peguei o carro e fui buscar Micaela na natação - que na verdade era uma aula de hidroginástica – como combinado. Ela estava junto com a filha Sofia - nome da moda para garotas de oito anos de idade. Me incumbi de fazer amizade com a garotinha semi-ruiva de olhos azuis enquanto sua mãe se desmanchava numa espécie de emoção contida perante aquela situação. Foi uma jogada certeira ter feito aquilo, mesmo que por outro lado fosse um terrível erro, porém não tinha resistir aquela menininha falante e encantadora que contava como foi seu dia e me questionava se era o novo amigo de sua mãe. Levei as duas para casa e Micaela fez questão de me apresentar sua mãe, uma senhora cinquentona tão falante quando a neta. Fiquei para o jantar – péssimo por sinal - e sobremesa – mais ou menos - depois fui embora direto para casa dormir insatisfeito com aquele cinzento dia frio como as ruas paulistanas devido as notícias sobre Bianca.
   


Evitei pensar no futuro de Bia e Ivan e outros assuntos não resolvidos da empresa. Tudo estava se tornando num turbilhão estressante que sugava minhas energias e paciência. Não havia trégua, um dia após o outro eram acontecimentos que exigiam uma resposta sempre equilibrada e madura sem espaços para erros e enganos. Bons eram os tempos em que nada disso acontecia e que a vida se resumia a poucas obrigações e responsabilidades comuns. No fundo, apesar de todo excesso de estresse que aquilo tudo pudesse causar, mesmo assim, me sentia grato pela vida que possuía. Tinha lutado por cada coisa que havia conquistado sem passar por cima de ninguém e desfrutado até então uma vida com altos e baixos; com mais altos do que baixos. Não tinha motivos para ser ingrato e perder a esperança e fé nas coisas. Uma hora ou outra tudo se ajeitaria. Não seria necessário rogar a anjos e santos para isso, a vida sempre vai em frente e segue seu curso. Pronto! Essa onda de pensamentos positivos me embalou num sono profundo e tranqüilo. O que viesse pela frente seria encarado e resolvido nesses alicerces. Embora às vezes me sentisse como um aventureiro em terras estranhas, ou batalhas  com bombas caindo por todos os lados, ainda havia espaço e tempo para coisas boas. Desde os romances fortuitos até viagens e festas, sempre havia um escape para aquela tensão. Entretanto, no futuro logo ali, me reservava uma reviravolta no destino.

Acordei naquele dia revigorado em esperanças e fé na vida. Acreditando que algo de muito bom iria acontecer. A minha intuição me mandava ficar calmo e sereno para o que haveria de vir. Mas parece que o destino tinha reservado planos mais duros para aquela ocasião. No mesmo dia tudo tomaria novos rumos inesperados. De manhã fiquei em mais uma reunião, depois todo pessoal do escritório iria almoçar numa espécie de confraternização para finalizar mais uma etapa num grande projeto. Comi um belo prato de sobremesa e fui visitar Bia na casa de Dado. Ela estava de partida para Curitiba. Inesperadamente ela me chamou para uma conversa a sós. Fomos até o charmoso jardim de inverno da casa, sentamos numa mesa face a face, e Bia parecia querer contar alguma coisa importante. Parecia triste e amargurada, mas ao menos estava controlada e lúcida naquele instante. Ela relatou detalhes da sua consulta no dia anterior e fez um pedido totalmente fora do esperado: Pediu para Ivan ficar comigo por algum tempo para que ela pudesse se recuperar de forma adequada. Ela alegava que tinha ciência que o comportamento instável dela estava fazendo mal para o próprio filho e reforçou o pedido apelando para o meu sentimento paterno.

Não havia como negar tal pedido. Mesmo não sabendo o que fazer e procurando o maço de cigarros no bolso do blazer pelo baque da novidade, tinha que aceitar aquilo e sacrificar-me pelo bem deles. Esse era o pensamento que me guiava naquele momento. Bia ainda relatou que já havia avisado minha mãe dessa decisão dela e que tinha tomado a decisão pensando no bem do próprio filho acima de qualquer outra coisa. Parecia haver um dedo da minha mãe naquilo, mas isso não importava, pois depois de muitos anos testemunhando de camarote ou a distância o sofrimento dela tomei aquilo como decisão sensata apesar da dureza.

Em seguida, Dado apareceu e conversamos por mais alguns minutos sobre toda aquela situação e no final desse encontro dei um abraço em Bia sem dizer nada, mas queria dizer que a amava tanto quanto antes, queria que ela me perdoasse por tê-la deixado sozinha. Mas não disse nada, calando isso dentro de mim. Ela também não disse nada, apenas engoliu o choro e secou uma tênue lágrima. Isso nos bastava depois duma história juntos sem final feliz até então. Assim que eles partiram para Curitiba - onde eu também estaria nos próximos dias depois da chegada de Ágatha com as meninas - telefonei para minha mãe. A velha francesa parecia ter tomado um choque: estava falando sem parar algo atípico para ela. Questionava sobre cada detalhe da situação de Bia e considerava sobre como eu deveria cuidar de Ivan sozinho. Além disso, ela estava às voltas com o retorno do meu irmão de Montreal que depois que sua esposa o deixou – fugindo com seu personal trainner – resolveu voltar a morar no Brasil junto da filha.  Pelo visto haveria uma inusitada reunião de família motivadas por problemas, casa qual com o seu. Cada um teria que repensar na sua própria vida e seguir um novo caminho. Para mim, era hora de colocar a cabeça no lugar, traçar planos e avaliar opções. Não seria nada fácil passar por aquele momento tendo que cuidar dum garoto que mal sabia andar e falar. Por incrível que pareça não sentia medo daquilo, sentia que tinha que fazer aquilo como uma forma de salvar tanto Ivan como Bia de algo pior e proporcionar para eles um futuro feliz.  

Após isso, passei o resto da tarde numa reunião informal com um produtor de queijos que estava me ofertando uma parceria nos seus negócios no interior paulista. Recebi aquele velho matuto em casa. Ele me trouxe variedades dos queijos que produzia, além de doces que serviam como acompanhamento para aqueles queijos saborosos. Entre uma conversa e outra sobre detalhes de negócios e outras histórias sobre queijos e vinhos, além de outras histórias que surgiram sobre nossas famílias nesse ramo tudo servia para me distrair. Histórias antigas regadas com nostalgia me fazima crer que tudo que fazemos na vida deixa sua marca. O velho queijeiro era um antigo amigo da família, em especial do meu avô, com quem aprendeu tal ofício. Ele ainda tinha as receitas de queijo meia cura de vovô. Fez questão de trazê-las numa pastinha que parecia portar dentro um documento secreto guardado a sete chaves. Fiquei feliz com tamanha demonstração de respeito por uma tradição, a qual meu avô, tinha trazido da sua experiência de vida na França.  

Após esse encontro magnífico segui meu rumo; o velho tomou o caminho de seu rancho leiteiro feliz pelo negócio fechado. Fui até o shopping e chamei Micaela para um rápido happy hour. Sem fazer rodeios fui direto ao assunto colocando todas cartas na mesa. Expus que iria ter que ficar com meu filho e cuidar dele por tempo indeterminado. Expliquei como aquilo iria afetar o meu cotidiano devido tamanha responsabilidade. Apesar dela ter entendido a situação senti um certo tom de egoísmo emanando dela. Pelo visto apesar de ser divorciada e mãe, ela não tinha o menor tato com situações desse tipo. Ela ficou de passar no meu apartamento mais tarde, mas acabou telefonando adiando o encontro, deixando isso para semana seguinte. Pelo visto, embora sem dizer nada claramente, ela estava pensando em pular fora do barco decepcionada com o desfecho dos fatos. Para mim aquilo seria uma boa opção se ela mesma tomasse essa iniciativa em fazer isso.

Passei o restante da noite arrumando as malas e degustando vinhos e queijos que havia ganhado de presente naquele dia. Além disso, fiz telefonemas para minha mãe e Bia que já estava por lá acertando detalhes sobre a situação de Ivan. Ainda falei com Marie para informar que havia decidido ir de carro com elas para Curitiba no dia seguinte assim que elas retornassem do nordeste, ou seja, elas teriam um longo dia cansativo de viagens no dia seguinte. Esse tempo de estrada seria útil para contar as novidades e perceber a reação delas sobre a situação de momento - em especial a de Ágatha que nas últimas semanas parecia querer se aproximar de mim não mais como uma amiga e ex caso do passado. Tudo planejado fui dormir depois duma garrafa de vinho lentamente sorvida com queijos meia cura.   

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