Pegar estrada em plena sexta-feira não
era uma das melhores opções devido o movimento intenso das rodovias. Porém o
excesso de bagagem seria o fator determinante para pegar estrada e não um vôo.
Assim, estava disposto a encarar horas e horas de estrada até Curitiba com uma
breve parada em Sorocaba visitar o velho libanês. Poderia ser uma visita não
muito amistosa, visto que ele andava possesso de raiva com um processo da minha
irmã em face dele, o qual depois de anos de lentidão na tramitação estava
chegando ao fim com a perda da causa para ele. Pior ainda era ter sido eu o
advogado dela naquele tempo.
Ágatha, Marie e Ing chegaram no meio da manhã
de Maceió, depois de semanas de ar puro e sol. Estavam bronzeadas e falantes
sem dar trégua para meus ouvidos. A quantidade triplicada de palavrório
feminino desenfreado parecia ser um meio de me deixar acordado, visto que tinha
despertado em cima da hora naquele dia e me atrasado para buscar elas no
aeroporto. Marie parecia mais calma, talvez com algum resfriado, era a que a
menos falava e toda hora puxava um lencinho de papel. Ingrid como sempre reservada,
mas ainda assim falante, já a mãe dela estava num estado em que as palavras e
gestos não pareciam ser suficientes para contar os eventos da viagem. Chegou
falando e gesticulando desde o desembarque de São Paulo até Curitiba. Depois
dum almoço com elas no apartamento pegamos a estrada destino Sorocaba. A
presença delas retirou totalmente a minha tensão dos últimos dias. Ademais,
Ágatha continuava insinuante e esse comportamento dela estava começando a
surtir efeito sobre mim. Depois duma lasanha feita às pressas pegamos a estrada
rumo a Sorocaba.
Chegando em Sorocaba, no rancho do
velho libanês, lá estava ele dedicando-se ao que era agora sua família. Estava
no estábulo encilhando um de seus cavalos favoritos: Um belo alazão quarto de
milha de crina negra. Assim que me viu entortou a boca, tentou disfarçar não
estar irritado tanto com a intromissão quanto a visita surpresa. Marie apareceu
logo em seguida e conseguiu quebrar o gelo do velhote, que logo nos convidou
para um suco na varanda da casa. O tropeiro libanês ficou entretido com as
meninas e nos papos delas sobre o nordeste, visto que ele também era um fã de
praias nordestinas. Quebrado o gelo de velho, apresentamos a “nova neta” para
ele. Foi outra surpresa para ele, isso fez o velho ficar tomado de certa
perplexidade, mas depois das explicações pertinentes ao caso ele compreendeu, e
ainda fez piada do fato dizendo cochichado no meu ouvido: “Sua mãe sempre dizia
eu era o sem vergonha, mas você me superou Al” bateu no meu ombro e foi pegar
mais uma jarra de limonada com hortelã. No retorno a varanda fez elogios
abertos à beleza da neta dizendo que tinha puxada a mãe que segundo ele era um
exemplar da beleza alemã digno de aplausos. Não era novidade ele fazer isso
visto que tinha morado em Koln na Alemanha e sempre falava das belas alemãs do
seu tempo de juventude. Parecia que a tensão e desagrado inicial dele havia
passado totalmente. O motivo daquela visita era justamente esse, fazer as
devidas apresentações da “nova neta” ao avô resmungão. Ágatha fazia questão
disso e resolvi atender a esse pedido dela aproveitando a oportunidade da
viagem visto que o velhote era ex patrão do falecido pai de Ágatha na época que
ele ainda tinha vigor para tocar fazendas. Passado esse momento família, no
qual ele ainda presenteou Ágatha com tapetes marroquinos, e doces árabes para
todos, e ainda prometeu para as meninas cavalos numa ocasião oportuna. Com isso
feito, retornamos as pistas deixando o velho libanês com um copo de limonada na
mão e seu chapéu de cowboy comendo poeira dando tchauzinho.
Chegando em Curitiba fomos
recepcionados por tia Charlotte e seu cãozinho yorkshire. Como sempre ela
estava com um largo sorriso no rosto e beijoqueira. Logo nos conduziu para um
jantar ainda mais falante com Ágatha dando as pautas da conversa à mesa. O
pequeno italianinho Ivan estava grudado mais com sua avó francesa do que com
Bia que estava apesar de serena ainda aparentando tristeza. Durante a viagem
sequer toquei no assunto de Ivan e Bia com as meninas, pois não houve uma
brecha no papo delas que se resumia a viagem, sapatos, bolsas e fofocas. Terminado
o jantar, seria a ocasião de conversar com Bia, tendo mamãe e tia Charlô como
testemunhas. Minha mãe conduziu Bia até o seu gabinete de mãos dadas com ela,
enquanto isso as meninas faziam às vezes de baby sitter do sonolento Ivan num
quarto improvisado para ele. No meio daquelas prateleiras de livros tia Charlô
deu abertura na conversa como se fosse uma mestre de cerimônias expert em
suavizar o clima com alguma frase de efeito de bom gosto. Bia contou toda sua
situação com detalhes, chorou e se emocionou por ter tomado a decisão de deixar
Ivan conosco. Disse ainda que no dia seguinte iria para casa tentar retomar sua
vida duma forma mais centrada e amena. Isso se resumia a ela voltar a cuidar
dos seus próprios negócios e levar o tratamento a sério duma forma que evitasse
recaídas. Somente o tempo nos daria respostas. Mais uma vez nos abraçamos e
mamãe e tia Charlô muito afetuosas com ela subiram com ela para o quarto de
Ivan.
Ante aquilo o meu coração palpitava
duma certa dose de alívio misturada com amargura. Ver Bia naquele estado
tomando decisões tão duras consigo mesma para finalmente sair daquela fase de
trevas em sua vida me deixava mexido. Minha mãe, durante a conversa, fez
questão de me dar uma série de conselhos, pois até aquele momento ainda tinha
em mente levar o garoto para São Paulo nos próximos dias e cuidar dele sozinho
naquele apartamento, ao menos até Bia reagir a tudo de forma adequada. Todavia,
essa minha idéia ou decisão iria se sustentar por pouco tempo...
Voltar para casa da velha francesa
ante uma situação tão aterradora como essa – testemunhar uma pessoa que ama
deixar seu filho para zelar da própria sanidade – fazia daquela cópia de
chateau um lugar que pedia para que permanecesse por lá desde o primeiro
instante que pisei ali naquele dia e avistei aquele yorkshire atrevido... Na
manhã seguinte, depois do café e despedida de Bia, subi as escadas da minha
morada ao lado do chateau, abri as portas dos meus aposentos, aquele leve odor
de poeira me fez espirrar. Descerrei cortinas e janelas em procura de luz e ar
puro... Olhei para jardim lá estava Ágatha ao sol com Ivan nos braços como se
fossem velhos conhecidos e as meninas também estavam próximas tirando fotos com
seus celulares. Elas tomaram conhecimento da situação através de Tia Charlô e
de minha mãe naquela mesma manhã. Ágatha com seu jeito meigo e despojado
tratava Ivan como se fosse seu filho encostando seu rosto no dele arrancando
sorrisos do menino. Ele pediu para sair dos braços dela e foi brincar com as
meninas no jardim da casa correndo na direção do cãozinho de tia Charlô que
estava ali como outro vigia da cena. Olhei para aquela cena com certa emoção e
nó na garganta. Tentado a imaginar que se amasse Ágatha tudo poderia ser
diferente na minha vida, pensei que poderia corresponder às sutis insinuações
dela e escrever um novo capítulo na nossa história, porém, não era isso que
desejava naquela altura dos acontecimentos. Isso foi somente um pensamento que
às vezes me vinha à mente como se fosse um chamado ou uma espécie de intuição.
Certamente muitos endossariam uma relacionamento entre nós, em especial as
meninas. Mas naquele momento espionando do alto da janela meu filho junto de
Ágatha e as meninas recordei duma frase que havia lido no dia anterior: "Dentre os mortais, felizes são aqueles que menos
coisas carecem".
No entanto, não havia filosofia que me dessem respostas
naquela hora. Não era da minha natureza ser como Diógenes que fez de si mesmo
uma obra viva de controle de suas paixões e autossuficiência. Lembrei ainda de onde havia aprendido isso:
Tempos atrás nos bancos da Universidade de Coimbra, numa aula de economia ou
filosofia. Naquele tempo, sim, eu também era outro, e também sofria por outro
motivo. Daquele tempo o que me restava hoje eram lembranças e aprendizados,
pois quando fui para Portugal também deixei aqui em algum lugar sepultada as
minhas dores e sonhos. Da trágica partida de Camila havia restado apenas isso:
lembranças e sonhos perdidos transformados em dor. Sonhos que reencontrei nos
braços de Bia por um curto espaço de tempo.
Como uma recordação atrai outra à memória, não tinha como
despistar a mente das lembranças do passado remoto se repetindo no passado
recente. Tal como Aline perdeu um filho, Camila naquele acidente perdeu outro. Quem
estava a salvo naquele dia mortal não era o meu filho, o nosso filho; era
Felipe que havia ficado com sua tia em casa. Essas lembranças me fizeram
repensar em tudo duma nova perspectiva. Agora na minha vida estava presente
Ingrid que até pouco tempo atrás era apenas a filha duma amiga, com a qual
tinha tido um caso passageiro no passado. Mesmo assim, algo sempre me dizia que ela era minha filha.
Agora ali, ao sol nos braços da mãe dessa filha, meu filho caçula, o qual nem
sabia o que estava acontecendo. Desde tão pequeno mesmo sem saber o que se
passava dependia não de sua mãe, mas dum pai que não sabia por onde começar...
Naquele momento algo
mudou em mim ao pensar em tudo isso. Uma perturbadora conversão de valores,
idéias e planos tomou conta do meu ser. Parei estático naquela janela puxei um
cigarro do bolso, e comecei a colocar as idéias e planos num ponto de reflexão
que levassem em consideração o que seria o mais sensato a fazer diante dos
fatos. O desfecho inesperado dos acontecimentos tinha me bombardeado com uma
carga de consciência da qual não havia fuga, pois à medida que tudo estava
acontecendo tão rápido o que havia em mim de dores e cicatrizes do passado, bem
como todos os acertos, duma hora para outra naquele minuto se transformou numa
lente para uma nova visão da vida.
Racionalizando isso a tese que obtive ao dar
dois passos da janela e ao olhar meu rosto num espelho foi de que tudo que
passa pela consciência de nossos atos e feitos. Nossas alegrias e tristezas,
memórias, temores, amores e esperanças, senso de identidade, prazeres e
liberdade e modo de agir no mundo - tudo isso sem exceção – passa pelo crivo da
nossa consciência. Não longe disso, um dia ou outro como uma prestação de
contas a si mesmo da qual não se pode fugir temos que avaliar nossas escolhas
para o futuro e evitar cometer muitos dos erros cometidos no passado. Eis que
novamente a filosofia daqueles gregos antigos, dum passado remoto aprendida
mais por status do que por sede de saber agora fazia sentido: "Dentre os
mortais, felizes são aqueles que menos coisas carecem".
Resolvi permanecer em
Curitiba. Todo aquele ambiente seria o ideal tanto para mim como para o pequeno
italianinho. Simplificar as coisas para obter melhores resultados seria uma
lição dos negócios aplicada á vida pessoal. Aprender como conviver fora dos
meus padrões de impulsos por affairs, dar espaço e tempo para um sujeito que
deixa a sua essência de cafa de lado em prol duma vida que preza coisas mais
concretas era uma outra missão. Ter visitado meu pai tinha me ajudado a pensar
nisso, pois ele passou anos falhando com filhos e esposa. Agora no entardecer
de sua vida parecia ter apenas lhe restado seus cavalos como companhia e
amargas disputas sobre bens. Definitivamente não queria isso para mim também,
mas como havia puxado muito desse temperamento insaciável dele por rabos de
saia e sempre por querer ter mais e mais; percebi que a rota em que estava era
a mesma da qual ele nunca quis se desviar...
De repente ouço Ivan
me chamando pelo apelido que ele e Bia tinham me batizado quando ele estava
começando a aprender a falar: “Babu”. Bia sempre me chamava de barbudo, por sua
vez ele sem saber falar direito dizia “babudo”. Bia ainda fez questão de
diminuir o modo que ele pronunciava e logo passou a ser “babu” o modo que ele
sempre se dirigia a mim. Raramente era papai ou pai, porém babu sempre soava
doce aos ouvidos e dava margem para contar essa mesma história para terceiros.
Avistei o pequeno tentando superar os primeiros degraus da escadaria e desci ao
encontro dele carregando ele pela roupa numa brincadeira que ele dava risada.
Sentei com ele no colo numa poltrona e ele foi direito ao assunto: "Vou ficar
com você e vovó pra mamãe trabalhar?"
- Vai sim, mas ela
volta rapidinho, então quero que você seja esperto e não fique bravo com a
mamãe ter ido trabalhar tá bom? Ivan concordou com a cabeça e disparou um
interrogatório sobre o paradeiro do cãozinho de tia Charlô pelo qual ele
procurava. Fui procurar junto dele o cão e o encontramos no seu cesto. Para
Ivan aquilo foi uma imensa alegria. Ele tentou abraçar o cachorro que fugiu
dele novamente. Passamos o restante da manhã brincando e conversando sobre os
assuntos que ele pautava. Ele parecia contente com o espaço e atenção de todos
e isso parecia ser um bom sinal. Ivan estava mais tranqüilo, sem choros por
qualquer motivo e bem mais ativo, coisas que na companhia de Bia pareciam ser
diferentes. Durante o almoço ele grudou mais uma vez na avô e almoçou ao lado
dela aprendendo lições de boa mesa transmitidas pela paciente avô coruja,
regras as quais ele tentava seguir na medida do possível. Depois do almoço ele
despencou num cochilo no quarto de Marie junto dela. Quando acordaram fomos
buscar Ing para irmos juntos ao golf club dar um passeio de final da tarde.
Enquanto Ivan
brincava com outras crianças aproveitei a ocasião para conversar com as duas
sobre a situação do Ivan e sobre o futuro delas. Marie estava decidida a
estudar moda e Ingrid estava indecisa entre continuar estudando piano num nível
mais elevado ou tentar ingressar no curso de medicina ou psicologia. Ainda
havia muito tempo para elas se prepararem, mas era bom saber o que elas
planejavam para si mesmas e como as mães delas encaravam aquilo. Parecia que
tudo estava sob controle. Ingrid estava mais solta comigo, quanto a Marie ainda
precisava ter uma conversa sobre a displicência dela nos estudos e certos
namoricos que segundo as duas velhas senhoras responsáveis pela estadia dela em
Curitiba estava a “levando para o mal caminho”. Para mim o jeito de Marie não
era surpresa, ela tinha puxado ao pai e ao avô. Tinha um senso de liberdade
igual ao meu e uma personalidade sempre disposta a driblar as opiniões e
imposições de comportamentos seja de quem fosse. Apesar de não repudiar ela
pelos ditos namoricos, precisava colocar ela dentro dum senso de
responsabilidade maior com os estudos tendo em vista os planos dela.
Deixei para abordar
isso isoladamente depois que deixamos Ingrid na casa dela. No começo da
conversa Marie, como a mãe dela, reagiu intempestivamente as minhas colocações,
mas depois cedeu a razão e compreendeu que precisava se ajustar em certas
coisas. Revelei apenas para ela que iria permanecer em Curitiba e a convidei
para ser uma minha office girl depois do colégio. Ela hesitou um pouco em
aceitar devido a vida mansa dela ser mais agradável do que responsabilidades,
mas ao final acabou aceitando devido as vantagens que prometi dar a ela se
cumprisse nosso acordo de estudos e trabalho. No fundo era apenas aumentar a
mesada dela e permitir que ela ao invés de voltar para a casa da mãe
permanecesse em Curitiba longe do controle restritivo da mãe em todos os
sentidos. A proposta era irrecusável dentro dos padrões que ela queria levar a
vida dela naquele momento. Como sempre uma boa conversa persuasiva e uma boa
proposta tinha dado certo como nos negócios.
Em casa, seguimos a
agenda da noite: jantar em família e depois embalar Ivan no sono narrando para
ele um pouco das aventuras de Michel Strogoff como minha mãe vinha fazendo
desde que ele chegou em Curitiba. A história era a mesma que fora contada para
meu irmão Michel – o qual tinha escolhido o livro por achar que se tratava dele
– e também para mim na infância por oportunidade da mesma ocasião: a hora de
dormir. Aquilo parecia que iria se tornar uma tradição definitiva na família,
pois já era a terceira geração que ouvia aquela mesma história na hora de
dormir.
Quando o pequeno
finalmente adormeceu, resolvi dar um passeio com Flávia numa chopperia da
cidade à convite dela. Retornei não muito tarde sem ainda descobrir mais dos
encantos dela. Assim que cheguei, logo em seguida Marie chegou também com seu
suposto namorado. Ela ficou de papo com ele na frente da réplica de chateau. Entre
uma beijoca e outra fiquei observando de longe como um espião até onde iria a
mão boba do rapaz que pelo visto era mais velho que ela. Quando notei que as
boas intenções do rapaz já eram outras saí na varanda do meu loft e acendi um
belo charuto dando uma sonora tosse. Aquilo serviu para o moleque moderar seus
modos e deixar Marie constrangida. Pegos de surpresa por um velho conhecedor
das artimanhas desse tipo de conduta juvenil não tiveram outra opção senão
ficar conversando até se despedirem. Enquanto isso, eu fiquei fazendo minhas
coisas. Dormi rindo daquela inesperada situação me sentindo um pai zeloso pela
castidade da filha. O fato é que ser um pai careta era algo que não combinava
nem um pouco comigo. Depois disso dormi com a sensação de dever cumprido
naquele dia.
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