sábado, 2 de agosto de 2014

A volta de babu ao lar

Pegar estrada em plena sexta-feira não era uma das melhores opções devido o movimento intenso das rodovias. Porém o excesso de bagagem seria o fator determinante para pegar estrada e não um vôo. Assim, estava disposto a encarar horas e horas de estrada até Curitiba com uma breve parada em Sorocaba visitar o velho libanês. Poderia ser uma visita não muito amistosa, visto que ele andava possesso de raiva com um processo da minha irmã em face dele, o qual depois de anos de lentidão na tramitação estava chegando ao fim com a perda da causa para ele. Pior ainda era ter sido eu o advogado dela naquele tempo.     


Ágatha, Marie e Ing chegaram no meio da manhã de Maceió, depois de semanas de ar puro e sol. Estavam bronzeadas e falantes sem dar trégua para meus ouvidos. A quantidade triplicada de palavrório feminino desenfreado parecia ser um meio de me deixar acordado, visto que tinha despertado em cima da hora naquele dia e me atrasado para buscar elas no aeroporto. Marie parecia mais calma, talvez com algum resfriado, era a que a menos falava e toda hora puxava um lencinho de papel. Ingrid como sempre reservada, mas ainda assim falante, já a mãe dela estava num estado em que as palavras e gestos não pareciam ser suficientes para contar os eventos da viagem. Chegou falando e gesticulando desde o desembarque de São Paulo até Curitiba. Depois dum almoço com elas no apartamento pegamos a estrada destino Sorocaba. A presença delas retirou totalmente a minha tensão dos últimos dias. Ademais, Ágatha continuava insinuante e esse comportamento dela estava começando a surtir efeito sobre mim. Depois duma lasanha feita às pressas pegamos a estrada rumo a Sorocaba.


Chegando em Sorocaba, no rancho do velho libanês, lá estava ele dedicando-se ao que era agora sua família. Estava no estábulo encilhando um de seus cavalos favoritos: Um belo alazão quarto de milha de crina negra. Assim que me viu entortou a boca, tentou disfarçar não estar irritado tanto com a intromissão quanto a visita surpresa. Marie apareceu logo em seguida e conseguiu quebrar o gelo do velhote, que logo nos convidou para um suco na varanda da casa. O tropeiro libanês ficou entretido com as meninas e nos papos delas sobre o nordeste, visto que ele também era um fã de praias nordestinas. Quebrado o gelo de velho, apresentamos a “nova neta” para ele. Foi outra surpresa para ele, isso fez o velho ficar tomado de certa perplexidade, mas depois das explicações pertinentes ao caso ele compreendeu, e ainda fez piada do fato dizendo cochichado no meu ouvido: “Sua mãe sempre dizia eu era o sem vergonha, mas você me superou Al” bateu no meu ombro e foi pegar mais uma jarra de limonada com hortelã. No retorno a varanda fez elogios abertos à beleza da neta dizendo que tinha puxada a mãe que segundo ele era um exemplar da beleza alemã digno de aplausos. Não era novidade ele fazer isso visto que tinha morado em Koln na Alemanha e sempre falava das belas alemãs do seu tempo de juventude. Parecia que a tensão e desagrado inicial dele havia passado totalmente. O motivo daquela visita era justamente esse, fazer as devidas apresentações da “nova neta” ao avô resmungão. Ágatha fazia questão disso e resolvi atender a esse pedido dela aproveitando a oportunidade da viagem visto que o velhote era ex patrão do falecido pai de Ágatha na época que ele ainda tinha vigor para tocar fazendas. Passado esse momento família, no qual ele ainda presenteou Ágatha com tapetes marroquinos, e doces árabes para todos, e ainda prometeu para as meninas cavalos numa ocasião oportuna. Com isso feito, retornamos as pistas deixando o velho libanês com um copo de limonada na mão e seu chapéu de cowboy comendo poeira dando tchauzinho.     


Chegando em Curitiba fomos recepcionados por tia Charlotte e seu cãozinho yorkshire. Como sempre ela estava com um largo sorriso no rosto e beijoqueira. Logo nos conduziu para um jantar ainda mais falante com Ágatha dando as pautas da conversa à mesa. O pequeno italianinho Ivan estava grudado mais com sua avó francesa do que com Bia que estava apesar de serena ainda aparentando tristeza. Durante a viagem sequer toquei no assunto de Ivan e Bia com as meninas, pois não houve uma brecha no papo delas que se resumia a viagem, sapatos, bolsas e fofocas. Terminado o jantar, seria a ocasião de conversar com Bia, tendo mamãe e tia Charlô como testemunhas. Minha mãe conduziu Bia até o seu gabinete de mãos dadas com ela, enquanto isso as meninas faziam às vezes de baby sitter do sonolento Ivan num quarto improvisado para ele. No meio daquelas prateleiras de livros tia Charlô deu abertura na conversa como se fosse uma mestre de cerimônias expert em suavizar o clima com alguma frase de efeito de bom gosto. Bia contou toda sua situação com detalhes, chorou e se emocionou por ter tomado a decisão de deixar Ivan conosco. Disse ainda que no dia seguinte iria para casa tentar retomar sua vida duma forma mais centrada e amena. Isso se resumia a ela voltar a cuidar dos seus próprios negócios e levar o tratamento a sério duma forma que evitasse recaídas. Somente o tempo nos daria respostas. Mais uma vez nos abraçamos e mamãe e tia Charlô muito afetuosas com ela subiram com ela para o quarto de Ivan.


Ante aquilo o meu coração palpitava duma certa dose de alívio misturada com amargura. Ver Bia naquele estado tomando decisões tão duras consigo mesma para finalmente sair daquela fase de trevas em sua vida me deixava mexido. Minha mãe, durante a conversa, fez questão de me dar uma série de conselhos, pois até aquele momento ainda tinha em mente levar o garoto para São Paulo nos próximos dias e cuidar dele sozinho naquele apartamento, ao menos até Bia reagir a tudo de forma adequada. Todavia, essa minha idéia ou decisão iria se sustentar por pouco tempo...


Voltar para casa da velha francesa ante uma situação tão aterradora como essa – testemunhar uma pessoa que ama deixar seu filho para zelar da própria sanidade – fazia daquela cópia de chateau um lugar que pedia para que permanecesse por lá desde o primeiro instante que pisei ali naquele dia e avistei aquele yorkshire atrevido... Na manhã seguinte, depois do café e despedida de Bia, subi as escadas da minha morada ao lado do chateau, abri as portas dos meus aposentos, aquele leve odor de poeira me fez espirrar. Descerrei cortinas e janelas em procura de luz e ar puro... Olhei para jardim lá estava Ágatha ao sol com Ivan nos braços como se fossem velhos conhecidos e as meninas também estavam próximas tirando fotos com seus celulares. Elas tomaram conhecimento da situação através de Tia Charlô e de minha mãe naquela mesma manhã. Ágatha com seu jeito meigo e despojado tratava Ivan como se fosse seu filho encostando seu rosto no dele arrancando sorrisos do menino. Ele pediu para sair dos braços dela e foi brincar com as meninas no jardim da casa correndo na direção do cãozinho de tia Charlô que estava ali como outro vigia da cena. Olhei para aquela cena com certa emoção e nó na garganta. Tentado a imaginar que se amasse Ágatha tudo poderia ser diferente na minha vida, pensei que poderia corresponder às sutis insinuações dela e escrever um novo capítulo na nossa história, porém, não era isso que desejava naquela altura dos acontecimentos. Isso foi somente um pensamento que às vezes me vinha à mente como se fosse um chamado ou uma espécie de intuição. Certamente muitos endossariam uma relacionamento entre nós, em especial as meninas. Mas naquele momento espionando do alto da janela meu filho junto de Ágatha e as meninas recordei duma frase que havia lido no dia anterior: "Dentre os mortais, felizes são aqueles que menos coisas carecem".



No entanto, não havia filosofia que me dessem respostas naquela hora. Não era da minha natureza ser como Diógenes que fez de si mesmo uma obra viva de controle de suas paixões e autossuficiência.  Lembrei ainda de onde havia aprendido isso: Tempos atrás nos bancos da Universidade de Coimbra, numa aula de economia ou filosofia. Naquele tempo, sim, eu também era outro, e também sofria por outro motivo. Daquele tempo o que me restava hoje eram lembranças e aprendizados, pois quando fui para Portugal também deixei aqui em algum lugar sepultada as minhas dores e sonhos. Da trágica partida de Camila havia restado apenas isso: lembranças e sonhos perdidos transformados em dor. Sonhos que reencontrei nos braços de Bia por um curto espaço de tempo.


Como uma recordação atrai outra à memória, não tinha como despistar a mente das lembranças do passado remoto se repetindo no passado recente. Tal como Aline perdeu um filho, Camila naquele acidente perdeu outro. Quem estava a salvo naquele dia mortal não era o meu filho, o nosso filho; era Felipe que havia ficado com sua tia em casa. Essas lembranças me fizeram repensar em tudo duma nova perspectiva. Agora na minha vida estava presente Ingrid que até pouco tempo atrás era apenas a filha duma amiga, com a qual tinha tido um caso passageiro no passado. Mesmo assim,  algo sempre me dizia que ela era minha filha. Agora ali, ao sol nos braços da mãe dessa filha, meu filho caçula, o qual nem sabia o que estava acontecendo. Desde tão pequeno mesmo sem saber o que se passava dependia não de sua mãe, mas dum pai que não sabia por onde começar...    


Naquele momento algo mudou em mim ao pensar em tudo isso. Uma perturbadora conversão de valores, idéias e planos tomou conta do meu ser. Parei estático naquela janela puxei um cigarro do bolso, e comecei a colocar as idéias e planos num ponto de reflexão que levassem em consideração o que seria o mais sensato a fazer diante dos fatos. O desfecho inesperado dos acontecimentos tinha me bombardeado com uma carga de consciência da qual não havia fuga, pois à medida que tudo estava acontecendo tão rápido o que havia em mim de dores e cicatrizes do passado, bem como todos os acertos, duma hora para outra naquele minuto se transformou numa lente para uma nova visão da vida. 


Racionalizando isso a tese que obtive ao dar dois passos da janela e ao olhar meu rosto num espelho foi de que tudo que passa pela consciência de nossos atos e feitos. Nossas alegrias e tristezas, memórias, temores, amores e esperanças, senso de identidade, prazeres e liberdade e modo de agir no mundo - tudo isso sem exceção – passa pelo crivo da nossa consciência. Não longe disso, um dia ou outro como uma prestação de contas a si mesmo da qual não se pode fugir temos que avaliar nossas escolhas para o futuro e evitar cometer muitos dos erros cometidos no passado. Eis que novamente a filosofia daqueles gregos antigos, dum passado remoto aprendida mais por status do que por sede de saber agora fazia sentido: "Dentre os mortais, felizes são aqueles que menos coisas carecem".


Resolvi permanecer em Curitiba. Todo aquele ambiente seria o ideal tanto para mim como para o pequeno italianinho. Simplificar as coisas para obter melhores resultados seria uma lição dos negócios aplicada á vida pessoal. Aprender como conviver fora dos meus padrões de impulsos por affairs, dar espaço e tempo para um sujeito que deixa a sua essência de cafa de lado em prol duma vida que preza coisas mais concretas era uma outra missão. Ter visitado meu pai tinha me ajudado a pensar nisso, pois ele passou anos falhando com filhos e esposa. Agora no entardecer de sua vida parecia ter apenas lhe restado seus cavalos como companhia e amargas disputas sobre bens. Definitivamente não queria isso para mim também, mas como havia puxado muito desse temperamento insaciável dele por rabos de saia e sempre por querer ter mais e mais; percebi que a rota em que estava era a mesma da qual ele nunca quis se desviar...


De repente ouço Ivan me chamando pelo apelido que ele e Bia tinham me batizado quando ele estava começando a aprender a falar: “Babu”. Bia sempre me chamava de barbudo, por sua vez ele sem saber falar direito dizia “babudo”. Bia ainda fez questão de diminuir o modo que ele pronunciava e logo passou a ser “babu” o modo que ele sempre se dirigia a mim. Raramente era papai ou pai, porém babu sempre soava doce aos ouvidos e dava margem para contar essa mesma história para terceiros. Avistei o pequeno tentando superar os primeiros degraus da escadaria e desci ao encontro dele carregando ele pela roupa numa brincadeira que ele dava risada. Sentei com ele no colo numa poltrona e ele foi direito ao assunto: "Vou ficar com você e vovó pra mamãe trabalhar?"


- Vai sim, mas ela volta rapidinho, então quero que você seja esperto e não fique bravo com a mamãe ter ido trabalhar tá bom? Ivan concordou com a cabeça e disparou um interrogatório sobre o paradeiro do cãozinho de tia Charlô pelo qual ele procurava. Fui procurar junto dele o cão e o encontramos no seu cesto. Para Ivan aquilo foi uma imensa alegria. Ele tentou abraçar o cachorro que fugiu dele novamente. Passamos o restante da manhã brincando e conversando sobre os assuntos que ele pautava. Ele parecia contente com o espaço e atenção de todos e isso parecia ser um bom sinal. Ivan estava mais tranqüilo, sem choros por qualquer motivo e bem mais ativo, coisas que na companhia de Bia pareciam ser diferentes. Durante o almoço ele grudou mais uma vez na avô e almoçou ao lado dela aprendendo lições de boa mesa transmitidas pela paciente avô coruja, regras as quais ele tentava seguir na medida do possível. Depois do almoço ele despencou num cochilo no quarto de Marie junto dela. Quando acordaram fomos buscar Ing para irmos juntos ao golf club dar um passeio de final da tarde.


Enquanto Ivan brincava com outras crianças aproveitei a ocasião para conversar com as duas sobre a situação do Ivan e sobre o futuro delas. Marie estava decidida a estudar moda e Ingrid estava indecisa entre continuar estudando piano num nível mais elevado ou tentar ingressar no curso de medicina ou psicologia. Ainda havia muito tempo para elas se prepararem, mas era bom saber o que elas planejavam para si mesmas e como as mães delas encaravam aquilo. Parecia que tudo estava sob controle. Ingrid estava mais solta comigo, quanto a Marie ainda precisava ter uma conversa sobre a displicência dela nos estudos e certos namoricos que segundo as duas velhas senhoras responsáveis pela estadia dela em Curitiba estava a “levando para o mal caminho”. Para mim o jeito de Marie não era surpresa, ela tinha puxado ao pai e ao avô. Tinha um senso de liberdade igual ao meu e uma personalidade sempre disposta a driblar as opiniões e imposições de comportamentos seja de quem fosse. Apesar de não repudiar ela pelos ditos namoricos, precisava colocar ela dentro dum senso de responsabilidade maior com os estudos tendo em vista os planos dela.


Deixei para abordar isso isoladamente depois que deixamos Ingrid na casa dela. No começo da conversa Marie, como a mãe dela, reagiu intempestivamente as minhas colocações, mas depois cedeu a razão e compreendeu que precisava se ajustar em certas coisas. Revelei apenas para ela que iria permanecer em Curitiba e a convidei para ser uma minha office girl depois do colégio. Ela hesitou um pouco em aceitar devido a vida mansa dela ser mais agradável do que responsabilidades, mas ao final acabou aceitando devido as vantagens que prometi dar a ela se cumprisse nosso acordo de estudos e trabalho. No fundo era apenas aumentar a mesada dela e permitir que ela ao invés de voltar para a casa da mãe permanecesse em Curitiba longe do controle restritivo da mãe em todos os sentidos. A proposta era irrecusável dentro dos padrões que ela queria levar a vida dela naquele momento. Como sempre uma boa conversa persuasiva e uma boa proposta tinha dado certo como nos negócios.

Em casa, seguimos a agenda da noite: jantar em família e depois embalar Ivan no sono narrando para ele um pouco das aventuras de Michel Strogoff como minha mãe vinha fazendo desde que ele chegou em Curitiba. A história era a mesma que fora contada para meu irmão Michel – o qual tinha escolhido o livro por achar que se tratava dele – e também para mim na infância por oportunidade da mesma ocasião: a hora de dormir. Aquilo parecia que iria se tornar uma tradição definitiva na família, pois já era a terceira geração que ouvia aquela mesma história na hora de dormir.  


Quando o pequeno finalmente adormeceu, resolvi dar um passeio com Flávia numa chopperia da cidade à convite dela. Retornei não muito tarde sem ainda descobrir mais dos encantos dela. Assim que cheguei, logo em seguida Marie chegou também com seu suposto namorado. Ela ficou de papo com ele na frente da réplica de chateau. Entre uma beijoca e outra fiquei observando de longe como um espião até onde iria a mão boba do rapaz que pelo visto era mais velho que ela. Quando notei que as boas intenções do rapaz já eram outras saí na varanda do meu loft e acendi um belo charuto dando uma sonora tosse. Aquilo serviu para o moleque moderar seus modos e deixar Marie constrangida. Pegos de surpresa por um velho conhecedor das artimanhas desse tipo de conduta juvenil não tiveram outra opção senão ficar conversando até se despedirem. Enquanto isso, eu fiquei fazendo minhas coisas. Dormi rindo daquela inesperada situação me sentindo um pai zeloso pela castidade da filha. O fato é que ser um pai careta era algo que não combinava nem um pouco comigo. Depois disso dormi com a sensação de dever cumprido naquele dia.

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