sábado, 5 de abril de 2014

– Capítulo 1 – Álbum de família



Certo dia, num final de tarde, fui visitar minha mãe, e no sofá da sala havia um daqueles velhos álbuns fotográficos de família deixado ali por acaso. Acabei encontrando fotos do meu primeiro aniversário, com pais, tios, irmãos e primos ao meu redor na ocasião de soprar aquela primeira vela em cima do bolo, numa mesa repleta de brigadeiros, beijinhos e aquele grande bolo branco na minha frente para o qual eu arregalava os olhos enquanto todos outros sorriam e cantavam parabéns.

Sem dúvida eram bons tempos... Todos estavam mais jovens ou ainda na infância. Meus pais ainda estavam casados e pareciam muito felizes. A começar pelo meu pai, que mesmo sendo um típico sujeito que raramente demonstra emoções estava naquela hora sorrindo e batendo palmas alegremente. Ele ainda usava o visual dos anos setenta - aquela costeleta comprida, cabelo jogado sempre para o mesmo lado, o narigão habitual de libanês, e aquele velho e emblemático relógio de ouro no pulso, além de outros detalhes. Minha mãe, estava com um penteado grande vistoso, tipo bolo de noiva, usava uma blusa tom de vinho e um colar de bolinhas ou pérolas o qual lembro ter puxado. Ela me segurava nos braços e ali estava eu de olhos fixos no bolo, gorducinho e bochechudo celebrando o meu primeiro ano de vida.

O interessante desses álbuns de família são os fartos registros dos momentos felizes vividos.  Fotografias das festas de casamento com todos ainda magrinhos sem panças do decorrer da idade, do nascimento e infância dos filhos, do Natal com avós ou dia das mães apenas com os irmãos levando café da manhã na cama para suas mães, dos aniversários de irmãos, primos e amiguinhos de escola, das viagens de férias quase sempre em praias, do primeiro dia na escola com a cara emburrada ou temerosa; em suma todos os momentos marcantes que merecem destaque ficam testemunhados com imagens nesses álbuns como algo de bom. Por outro lado, nunca ninguém pensa em fotografar as brigas, as separações, as vezes que a esposa fica enjoada na gravidez ou o primeiro porre dum adolescente. Essas coisas que também marcam a vida duma forma inversa que belos álbuns de família retratam geralmente. Além disso, as fotos raramente descrevem a personalidade de alguém.  Na maioria das vezes o que fica capturando é o momento feliz que aquelas pessoas viveram e quase nada de suas angústias e momentos difíceis transparece nesses testemunhos fotográficos.

Ao ver a foto do meu pai ninguém poderia alegar que ele é um sujeito - como todo bom libanês - mão de vaca e expert nos negócios, indo além desse esteriótipo tradiocinal, meu pai no trato pessoal é fechado como guarda de boxeador, homem sisudo e mal humorado todos os dias além de ser uma pessoa de poucas palavras que só pensava em trabalho, só o via na hora das refeições praticamente. No café da manhã lá estava ele com sua xícara de café sem leite e jornal sem dar sequer bom dia ou dirigir qualquer palavra aos filhos. Depois do jantar se enfiava no seu gabinete pessoal que era uma zona proibida de ingresso aos filhos sob qualquer pretexto. Lá ficava ele horas com livros contábeis e uma calculadora Olivette fazendo aquele barulhinho das teclas e rolinho de papel com valores e ao fundo o som da TV ligado num telejornal. Dali daquela sala nunca saiu uma nota musical, por nunca ter um vitrola ou rádio, só havia arquivos e livros, todos eles sobre contabilidade e administração de empresas. Apesar de não beber nem fumar, papai era muito chegado num rabo de saia. Levou-se anos para que um desses casos realmente abalasse o casamento e família classe média que vivia uma vida como tantas outras famílias com pai como o meu, ou pais mais presentes que brincam com os filhos quando tinham algum tempo livre.

A minha radiante mãezinha que na foto sorria desmedidamente, é por sua vez, uma pessoa conservadora, religiosa, uma daquelas professoras disciplinadoras e exigentes, ao mesmo tempo que é zeloza e carinhosa com filhos e alunos ao ponto de ser respeitada pelo jeitão autoritário e amada por todos devido o outro lado ao mesmo tempo manso e afetivo. Uma mulher que fala baixo e pausadamente, que se veste de forma sóbria e elegante, que não demonstra suas fragilidades a qualquer pessoa tanto quanto não revela grandes afeições em público. Avessa a badalações, e certos caprichos consumistas como roupas da moda, jóias caras, viagens e outras coisas típicas de mulheres abastadas, ela preferiu sempre manter um estilo mais simples e comedido tanto no modo de se expressar como comportar em todos os sentidos. Ao contrário do marido que não tinha diálogo com os filhos, mamãe manteve sempre atenta a cada detalhe da vida dos filhos, mesmo depois de casado, no entanto, nunca emite opinião a não ser que seja solicitada sobre algo nesse sentido. Raras foram as ocasiões que expressou que gostava mais duma amizade ou namorada dos filhos, e que deu palpites não solicitados sobre alguma coisa. Ao seu modo mamãe ao mesmo tempo que exigia o melhor dos filhos tanto nos estudos quanto no comportamento e valores, sempre respeitou a liberdade de escolha dos filhos em tudo; embora pareça o contrário em muitas ocasiões talvez devido ao seu temperamento exigente.    

A beleza dela se exprimia não apenas pelos gestos elegantes e postura formal, o que mamãe tinha de melhor era visto nas horas íntimas junto dos filhos quando preparava bolos fabulosos para piqueniques no rancho ou quando nos levava para fazer alguma atividade junto dela. Nesses momentos, entre um bolo seja de casa ou confeitaria, um sorvete ou lanchinho, é que ela se desmanchava em doçura com cada um de nós. Ensinou os filhos a conversar em francês com ela e contava suas histórias do seu tempo infância e colégio para nós na hora de dormir usando por assim dizer em ambos os sentidos a língua mater. Quando o pai viajava alguns dias, a casa ficava mais sonora e alegre. Mamãe fazia uma espécie de bailinho improvisado após o jantar com discos do Beatles ou Elvis Presley e tirava os filhos para dançar e até a empregada entrava na dança. Com o passar dos anos esses traços nunca se perderam, mesmo depois da separação essas coisas se tornaram mais constantes e a ausência do meu pai nunca foi sentida duma forma profunda, tudo isso muito por causa desse estilo que minha mãe possui de conduzir as coisas com ternura e paciência sem deixar levar-se por sentimentos menores.    
Desse casal aparentemente comum a tantos outros, que casam formam famílias estáveis e depois se separam ao passo do destino, este mesmo destino que uniu uma professora francesa a um comerciante libanês deu à luz em primeiro lugar uma síntese do lado autoritário e reservado de ambos. Minha irmã Agnes tem os traços do lado árabe da família do velho libanês e começou sua carreira profissional nas artes dando aulas de balé e piano sempre levando consigo a disciplina e jeito direito de falar sem rodeios das broncas e correções por qualquer deslize, hábitos típicos herdados do pai e da mãe. Diria que ela é uma espécie de sargentona que por ironia do destino acabou casando-se com um milico. O lado suave dela, pelo que sempre pude observar, sempre ficava mais a mostra para o marido e filhas. Nos primeiros anos de infância sempre estava na companhia dela e das amigas dela em diversas ocasiões. Recordo-me das vezes que a acompanhava nas aulas de dança e das suas amigas que trocavam de roupa na minha presença sempre me mandando olhar para outro lado com aquele tom de algo proibido para menores. Como ela adorava também verão, praia e piscina, também sempre a acompanhava no clube e ficava passando protetor solar ou bronzeador nas costas das amigas. Posso dizer que foi a minha iniciação junto ao universo feminino duma forma bastante peculiar. Talvez dessa pequena convivência tenha nascido a admiração pela natureza feminina, e uma espécie de conhecimento sobre como as mulheres agem duma forma não deturpada. Por mais que fosse criança, aqueles passeios era uma espécie de escola sobre como as meninas são e agem e as imagens e cenas presenciadas, vez ou outra, permitiam ver algo além das roupas íntimas delas, não com malícia, mas sim como algo extremamente natural e cheio de significado sobre a natureza feminina.

O segundo filho, meu irmão Thalles, puxou o lado calado do meu pai e o espírito intelectual da minha mãe. Sempre estava com algum livro a tira colo ou desenhando, e devido ser impedido de tocar no piano pela minha irmã, a qual tinha ciúmes de qualquer pessoa que se atrevesse a brincar no piano. Pelo visto ele resolveu ser roqueiro e guitarrista por essas razões. Thalles escutava seus discos em alto volume para irritar minha irmã que tinha quarto ao lado e isso dava motivos para brigas entre ambos por causa do som alto. Passado os anos embora ambos tivessem talentos para alguma coisa ligada a arte, Agnes se tornou administradora de empresas e Thalles arquiteto. Já o terceiro filho, parece não ter puxado nem pai nem mãe, Antony era o mais levado e só pensava em futebol, gostava de passar o tempo na rua e vivia sendo repreendido por falar palavrões e se comportar pessimamente na presença de visitas. Apesar disso era ótimo aluno e gênio dos cálculos e acabou se tornando engenheiro e com o passar dos anos foi ficando o oposto do que era quando criança. Tornou-se um sujeito religioso e pedante, cheio de manias e sistemático, além de regulador da conduta alheia.

Da minha parte, creio ter herdado o talento e jeito nos negócios do meu pai, assim como seu lado mulherengo, ao contrário dele que não bebia nem churrascos e festas eu bebo e fumo e ao que tudo indica aprendi isso com tio Ali, irmão mais novo do meu pai, que era um sujeito dado à pescaria e chegado em charutos cubanos e muita cachaça. Algumas vezes tio Ali, que nunca se casou e nem teve filhos, me levava para acampar a beira do rio em suas pescarias, e levava eu e meu irmão para jogar futebol, e vez ou outra nos fazia de emissários de bilhetes para suas namoradas espalhadas pela cidade. Recordo duma moça gorda, que era vendedora de loja de móveis e que largou dele depois de anos aguardando o pedido de casamento. Pelo visto foi o amor da vida dele, na semana que ela deu o pé no traseiro dele ele encheu a cara a semana toda e foi parar no hospital. Naquela época foi um fato de comento por meses na família. Depois disso ele manteve a sua rotina de bebedeiras e pescarias sem ter alguém especial para que pudesse navegar no seu barco ao seu lado. Tio Ali era uma figura inusitada, bon vivant, cheio de péssimas amizades, vivia em bares e mesas de carteado. Muitas vezes fomos repreendidos por mamãe para evitar a companhia dele em certos lugares, mas era inútil, Tio Ali sabia cativar pessoas, ser comunicativo e simpático com qualquer pessoa fazia dele um sujeito bacana que logo o tornava no centro das atenções por suas piadas, causos e jeito espontâneo de ser. Por ser gerente dos negócios do velho ele sempre estava viajando e trazendo presentes para os sobrinhos. Em sua casa o ambiente era altamente livre e sem restrições. Se com minha irmã eu vislumbrava o lado leve da feminilidade, na casa de tio Ali tínhamos amostras grátis de muita coisa oposta a isso. Suas amigas, em geral sirigaitas e mulheres exuberantes de idade mais avançada insinuavam coisas para aqueles garotos que como meu irmão Antony e eu que éramos visitas recorrentes na casa dele nos deixando fascinados com uma outra faceta do universo feminino. Infelizmente Tio Ali adoeceu depois de décadas de vida boêmia e muitas pescarias, hoje em dia está entrevado numa cadeira de rodas e quase sem lucidez. Entretanto, as passagens de vida em torno desse mundinho o qual ele era assíduo não escapam às boas recordações.  

Da parte da minha mãe creio ter sido influenciado pela cultura dela, e por outro lado rechaçado todas as tentativas dela e também da minha irmã, em me tornarem uma pessoa conservadora e com certas chatices. Na transição da infância para adolescência eu tinha influências do lado rock and roll de Thalles e do lado levado de Antony, era o mascote da turma deles assim como fui o mascote da turma de belas adolescentes da minha irmã. Quando todos eles foram fazer faculdade restou-me ficar com mamãe, já divorciada e sempre com aquele jeitão tradicional e exigente.

As minhas lembranças de infância basicamente se resumem a uma sucessão e eventos em família e em companhia de parentes e colegas de escola. Devido ser filho de professora era obrigado a estudar arduamente antes de ganhar algumas horas de liberdade cotidiana para poder brincar. Essa forte imposição de estudos me fez gostar de enciclopédias e livros de história, em especial me atraia tudo que se referia a idade média, assim, depois de horas de lições de casa passava a brincar me passando por um nobre cavaleiro em batalhas, possivelmente uma daquelas da Guerra dos Cem anos ou Cruzadas. Me passava por um cavaleiro francês sempre com grandes missões que depois se transformava em rei e se casava com alguma princesa que em geral imaginava ser alguma amiga da minha irmã ou amiguinha de escola. Fazia escudos de caixas de papelão, espadas com pedaços de madeira, castelos na lavanderia, chamava o garoto vizinho para ser meu parceiro nessas viagens para terras com nomes estranhos que inventávamos. Muitas vezes os nossos inimigos eram meus irmãos mais velho que se diziam feiticeiros que lançavam encantos do mal sobre nós com seus discos e camisetas de rock e nos contavam histórias de terror.

Era ainda possível sair de casa e brincar na rua o que não faltava era diversão. Desde duma partida de taco na rua de casa até corridas de bicicletas e expedições em árvores e casas abandonadas a coisa toda fluía conforme a imaginação e magia comum desta fase que parece que as crianças de hoje em dia perderam devido aos games e computadores. Dia após dia sempre havia uma brincadeira nova, uma história extraordinária e longas conversas sobre qualquer assunto que mexe com o imaginário infantil na beira da calçada antes do jantar. Alguns desses momentos também foram registrados em fotos e quando lançaram aquelas câmeras VHS essas brincadeiras foram pouco registradas, pois a infância já estava quase no final e os primeiros passos rumo à adolescência e coisas novas estavam já batendo a porta.

No entanto, ao encontrar um álbum fotográfico com tantas imagens dessa época foi possível rememorar tudo isso com satisfação e saudade, sendo até mesmo possível dizer que faz falta esse tempo onde tudo era tão simples, fácil e distante das desilusões que temos com o passar dos anos e vida adulta.  O que importa é que essa época foi bem aproveitada ao máximo que foi possível por um garoto como eu e devo muito que sou a essa época de ouro.      

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