Certo dia, num final de tarde,
fui visitar minha mãe, e no sofá da sala havia um daqueles velhos álbuns fotográficos
de família deixado ali por acaso. Acabei encontrando fotos do meu primeiro
aniversário, com pais, tios, irmãos e primos ao meu redor na ocasião de soprar
aquela primeira vela em cima do bolo, numa mesa repleta de brigadeiros,
beijinhos e aquele grande bolo branco na minha frente para o qual eu arregalava
os olhos enquanto todos outros sorriam e cantavam parabéns.
Sem dúvida eram bons tempos...
Todos estavam mais jovens ou ainda na infância. Meus pais ainda estavam casados
e pareciam muito felizes. A começar pelo meu pai, que mesmo sendo um típico
sujeito que raramente demonstra emoções estava naquela hora sorrindo e batendo
palmas alegremente. Ele ainda usava o visual dos anos setenta - aquela
costeleta comprida, cabelo jogado sempre para o mesmo lado, o narigão habitual
de libanês, e aquele velho e emblemático relógio de ouro no pulso, além de
outros detalhes. Minha mãe, estava com um penteado grande vistoso, tipo bolo de
noiva, usava uma blusa tom de vinho e um colar de bolinhas ou pérolas o qual
lembro ter puxado. Ela me segurava nos braços e ali estava eu de olhos fixos no
bolo, gorducinho e bochechudo celebrando o meu primeiro ano de vida.
O interessante desses álbuns de
família são os fartos registros dos momentos felizes vividos. Fotografias das festas de casamento com todos
ainda magrinhos sem panças do decorrer da idade, do nascimento e infância dos filhos,
do Natal com avós ou dia das mães apenas com os irmãos levando café da manhã na
cama para suas mães, dos aniversários de irmãos, primos e amiguinhos de escola,
das viagens de férias quase sempre em praias, do primeiro dia na escola com a
cara emburrada ou temerosa; em suma todos os momentos marcantes que merecem
destaque ficam testemunhados com imagens nesses álbuns como algo de bom. Por
outro lado, nunca ninguém pensa em fotografar as brigas, as separações, as
vezes que a esposa fica enjoada na gravidez ou o primeiro porre dum adolescente.
Essas coisas que também marcam a vida duma forma inversa que belos álbuns de
família retratam geralmente. Além disso, as fotos raramente descrevem a
personalidade de alguém. Na maioria das
vezes o que fica capturando é o momento feliz que aquelas pessoas viveram e
quase nada de suas angústias e momentos difíceis transparece nesses testemunhos
fotográficos.
Ao ver a foto do meu pai ninguém
poderia alegar que ele é um sujeito - como todo bom libanês - mão de vaca e expert
nos negócios, indo além desse esteriótipo tradiocinal, meu pai no trato pessoal
é fechado como guarda de boxeador, homem sisudo e mal humorado todos os dias
além de ser uma pessoa de poucas palavras que só pensava em trabalho, só o via
na hora das refeições praticamente. No café da manhã lá estava ele com sua
xícara de café sem leite e jornal sem dar sequer bom dia ou dirigir qualquer
palavra aos filhos. Depois do jantar se enfiava no seu gabinete pessoal que era
uma zona proibida de ingresso aos filhos sob qualquer pretexto. Lá ficava ele
horas com livros contábeis e uma calculadora Olivette fazendo aquele barulhinho
das teclas e rolinho de papel com valores e ao fundo o som da TV ligado num
telejornal. Dali daquela sala nunca saiu uma nota musical, por nunca ter um
vitrola ou rádio, só havia arquivos e livros, todos eles sobre contabilidade e
administração de empresas. Apesar de não beber nem fumar, papai era muito
chegado num rabo de saia. Levou-se anos para que um desses casos realmente
abalasse o casamento e família classe média que vivia uma vida como tantas
outras famílias com pai como o meu, ou pais mais presentes que brincam com os
filhos quando tinham algum tempo livre.
A minha radiante mãezinha que na
foto sorria desmedidamente, é por sua vez, uma pessoa conservadora, religiosa,
uma daquelas professoras disciplinadoras e exigentes, ao mesmo tempo que é
zeloza e carinhosa com filhos e alunos ao ponto de ser respeitada pelo jeitão
autoritário e amada por todos devido o outro lado ao mesmo tempo manso e afetivo.
Uma mulher que fala baixo e pausadamente, que se veste de forma sóbria e
elegante, que não demonstra suas fragilidades a qualquer pessoa tanto quanto
não revela grandes afeições em público. Avessa a badalações, e certos caprichos
consumistas como roupas da moda, jóias caras, viagens e outras coisas típicas
de mulheres abastadas, ela preferiu sempre manter um estilo mais simples e
comedido tanto no modo de se expressar como comportar em todos os sentidos. Ao contrário
do marido que não tinha diálogo com os filhos, mamãe manteve sempre atenta a
cada detalhe da vida dos filhos, mesmo depois de casado, no entanto, nunca
emite opinião a não ser que seja solicitada sobre algo nesse sentido. Raras foram
as ocasiões que expressou que gostava mais duma amizade ou namorada dos filhos,
e que deu palpites não solicitados sobre alguma coisa. Ao seu modo mamãe ao
mesmo tempo que exigia o melhor dos filhos tanto nos estudos quanto no
comportamento e valores, sempre respeitou a liberdade de escolha dos filhos em
tudo; embora pareça o contrário em muitas ocasiões talvez devido ao seu temperamento
exigente.
A beleza dela se exprimia não
apenas pelos gestos elegantes e postura formal, o que mamãe tinha de melhor era
visto nas horas íntimas junto dos filhos quando preparava bolos fabulosos para
piqueniques no rancho ou quando nos levava para fazer alguma atividade junto
dela. Nesses momentos, entre um bolo seja de casa ou confeitaria, um sorvete ou
lanchinho, é que ela se desmanchava em doçura com cada um de nós. Ensinou os
filhos a conversar em francês com ela e contava suas histórias do seu tempo
infância e colégio para nós na hora de dormir usando por assim dizer em ambos
os sentidos a língua mater. Quando o pai viajava alguns dias, a casa ficava
mais sonora e alegre. Mamãe fazia uma espécie de bailinho improvisado após o
jantar com discos do Beatles ou Elvis Presley e tirava os filhos para dançar e
até a empregada entrava na dança. Com o passar dos anos esses traços nunca se
perderam, mesmo depois da separação essas coisas se tornaram mais constantes e
a ausência do meu pai nunca foi sentida duma forma profunda, tudo isso muito
por causa desse estilo que minha mãe possui de conduzir as coisas com ternura e
paciência sem deixar levar-se por sentimentos menores.
Desse casal aparentemente comum a
tantos outros, que casam formam famílias estáveis e depois se separam ao passo
do destino, este mesmo destino que uniu uma professora francesa a um
comerciante libanês deu à luz em primeiro lugar uma síntese do lado autoritário
e reservado de ambos. Minha irmã Agnes tem os traços do lado árabe da família
do velho libanês e começou sua carreira profissional nas artes dando aulas de
balé e piano sempre levando consigo a disciplina e jeito direito de falar sem
rodeios das broncas e correções por qualquer deslize, hábitos típicos herdados
do pai e da mãe. Diria que ela é uma espécie de sargentona que por ironia do
destino acabou casando-se com um milico. O lado suave dela, pelo que sempre
pude observar, sempre ficava mais a mostra para o marido e filhas. Nos
primeiros anos de infância sempre estava na companhia dela e das amigas dela em
diversas ocasiões. Recordo-me das vezes que a acompanhava nas aulas de dança e
das suas amigas que trocavam de roupa na minha presença sempre me mandando
olhar para outro lado com aquele tom de algo proibido para menores. Como ela
adorava também verão, praia e piscina, também sempre a acompanhava no clube e
ficava passando protetor solar ou bronzeador nas costas das amigas. Posso dizer
que foi a minha iniciação junto ao universo feminino duma forma bastante
peculiar. Talvez dessa pequena convivência tenha nascido a admiração pela
natureza feminina, e uma espécie de conhecimento sobre como as mulheres agem
duma forma não deturpada. Por mais que fosse criança, aqueles passeios era uma
espécie de escola sobre como as meninas são e agem e as imagens e cenas
presenciadas, vez ou outra, permitiam ver algo além das roupas íntimas delas, não
com malícia, mas sim como algo extremamente natural e cheio de significado
sobre a natureza feminina.
O segundo filho, meu irmão Thalles,
puxou o lado calado do meu pai e o espírito intelectual da minha mãe. Sempre
estava com algum livro a tira colo ou desenhando, e devido ser impedido de
tocar no piano pela minha irmã, a qual tinha ciúmes de qualquer pessoa que se
atrevesse a brincar no piano. Pelo visto ele resolveu ser roqueiro e
guitarrista por essas razões. Thalles escutava seus discos em alto volume para
irritar minha irmã que tinha quarto ao lado e isso dava motivos para brigas
entre ambos por causa do som alto. Passado os anos embora ambos tivessem
talentos para alguma coisa ligada a arte, Agnes se tornou administradora de
empresas e Thalles arquiteto. Já o terceiro filho, parece não ter puxado nem
pai nem mãe, Antony era o mais levado e só pensava em futebol, gostava de
passar o tempo na rua e vivia sendo repreendido por falar palavrões e se comportar
pessimamente na presença de visitas. Apesar disso era ótimo aluno e gênio dos
cálculos e acabou se tornando engenheiro e com o passar dos anos foi ficando o
oposto do que era quando criança. Tornou-se um sujeito religioso e pedante,
cheio de manias e sistemático, além de regulador da conduta alheia.
Da minha parte, creio ter herdado
o talento e jeito nos negócios do meu pai, assim como seu lado mulherengo, ao
contrário dele que não bebia nem churrascos e festas eu bebo e fumo e ao que
tudo indica aprendi isso com tio Ali, irmão mais novo do meu pai, que era um
sujeito dado à pescaria e chegado em charutos cubanos e muita cachaça. Algumas
vezes tio Ali, que nunca se casou e nem teve filhos, me levava para acampar a
beira do rio em suas pescarias, e levava eu e meu irmão para jogar futebol, e
vez ou outra nos fazia de emissários de bilhetes para suas namoradas espalhadas
pela cidade. Recordo duma moça gorda, que era vendedora de loja de móveis e que
largou dele depois de anos aguardando o pedido de casamento. Pelo visto foi o
amor da vida dele, na semana que ela deu o pé no traseiro dele ele encheu a
cara a semana toda e foi parar no hospital. Naquela época foi um fato de
comento por meses na família. Depois disso ele manteve a sua rotina de
bebedeiras e pescarias sem ter alguém especial para que pudesse navegar no seu
barco ao seu lado. Tio Ali era uma figura inusitada, bon vivant, cheio de
péssimas amizades, vivia em bares e mesas de carteado. Muitas vezes fomos
repreendidos por mamãe para evitar a companhia dele em certos lugares, mas era
inútil, Tio Ali sabia cativar pessoas, ser comunicativo e simpático com
qualquer pessoa fazia dele um sujeito bacana que logo o tornava no centro das atenções
por suas piadas, causos e jeito espontâneo de ser. Por ser gerente dos negócios
do velho ele sempre estava viajando e trazendo presentes para os sobrinhos. Em
sua casa o ambiente era altamente livre e sem restrições. Se com minha irmã eu
vislumbrava o lado leve da feminilidade, na casa de tio Ali tínhamos amostras
grátis de muita coisa oposta a isso. Suas amigas, em geral sirigaitas e
mulheres exuberantes de idade mais avançada insinuavam coisas para aqueles
garotos que como meu irmão Antony e eu que éramos visitas recorrentes na casa
dele nos deixando fascinados com uma outra faceta do universo feminino.
Infelizmente Tio Ali adoeceu depois de décadas de vida boêmia e muitas
pescarias, hoje em dia está entrevado numa cadeira de rodas e quase sem
lucidez. Entretanto, as passagens de vida em torno desse mundinho o qual ele
era assíduo não escapam às boas recordações.
Da parte da minha mãe creio ter
sido influenciado pela cultura dela, e por outro lado rechaçado todas as tentativas
dela e também da minha irmã, em me tornarem uma pessoa conservadora e com
certas chatices. Na transição da infância para adolescência eu tinha influências
do lado rock and roll de Thalles e do lado levado de Antony, era o mascote da
turma deles assim como fui o mascote da turma de belas adolescentes da minha
irmã. Quando todos eles foram fazer faculdade restou-me ficar com mamãe, já divorciada
e sempre com aquele jeitão tradicional e exigente.
As minhas lembranças de infância basicamente
se resumem a uma sucessão e eventos em família e em companhia de parentes e
colegas de escola. Devido ser filho de professora era obrigado a estudar
arduamente antes de ganhar algumas horas de liberdade cotidiana para poder
brincar. Essa forte imposição de estudos me fez gostar de enciclopédias e
livros de história, em especial me atraia tudo que se referia a idade média,
assim, depois de horas de lições de casa passava a brincar me passando por um
nobre cavaleiro em batalhas, possivelmente uma daquelas da Guerra dos Cem anos
ou Cruzadas. Me passava por um cavaleiro francês sempre com grandes missões que
depois se transformava em rei e se casava com alguma princesa que em geral
imaginava ser alguma amiga da minha irmã ou amiguinha de escola. Fazia escudos
de caixas de papelão, espadas com pedaços de madeira, castelos na lavanderia,
chamava o garoto vizinho para ser meu parceiro nessas viagens para terras com
nomes estranhos que inventávamos. Muitas vezes os nossos inimigos eram meus
irmãos mais velho que se diziam feiticeiros que lançavam encantos do mal sobre
nós com seus discos e camisetas de rock e nos contavam histórias de terror.
Era ainda possível sair de casa e
brincar na rua o que não faltava era diversão. Desde duma partida de taco na
rua de casa até corridas de bicicletas e expedições em árvores e casas
abandonadas a coisa toda fluía conforme a imaginação e magia comum desta fase
que parece que as crianças de hoje em dia perderam devido aos games e
computadores. Dia após dia sempre havia uma brincadeira nova, uma história
extraordinária e longas conversas sobre qualquer assunto que mexe com o
imaginário infantil na beira da calçada antes do jantar. Alguns desses momentos
também foram registrados em fotos e quando lançaram aquelas câmeras VHS essas
brincadeiras foram pouco registradas, pois a infância já estava quase no final
e os primeiros passos rumo à adolescência e coisas novas estavam já batendo a
porta.
No entanto, ao encontrar um álbum
fotográfico com tantas imagens dessa época foi possível rememorar tudo isso com
satisfação e saudade, sendo até mesmo possível dizer que faz falta esse tempo
onde tudo era tão simples, fácil e distante das desilusões que temos com o
passar dos anos e vida adulta. O que
importa é que essa época foi bem aproveitada ao máximo que foi possível por um
garoto como eu e devo muito que sou a essa época de ouro.
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