quarta-feira, 9 de abril de 2014

Passado, Presente e o Futuro a espera...



Voltando ao Brasil, assim que cheguei em casa estavam meu pai e um primo almoçando em companhia de tia Charlô. Aqueles dois só tinham um motivo para estarem em casa naquele dia: Vender uma fazenda encrencada no Mato Grosso do Sul por falta de opção de compradores.  A fazenda originalmente era um latifúndio respeitável, após a separação dos meus pais tinha sido divida em divida em três partes: Uma parte ficou com o velho libanês, outra com minha mãe, e outra com o cunhado de minha mãe, casado com sua irmã, que era sócio de papai, que depois que bateu as botas legou sua parte para os meus dois primos Alessandro e Karen.

Algum tempo atrás eu havia tentado comprar a parte deles, mas minha prima que mora precisamente numa dessas fazendas, estava irredutível em vender e ter que se mudar de lá até então. Depois que ela tinha ficado viúva pensei que venderia. Ledo engano. Ela não venderia aquelas terras de forma alguma, e isso foi causa de atrito entre nós. Justo com ela que era minha prima predileta. Quando passava férias naquela fazenda ou finais de semana de feriados prolongados ela era a minha companhia vinte quatro horas por dia, a ponto de ter sido a primeira garota que cedeu aos meus encantos logo após que eu aprendi certas coisas com Gina. Poderíamos ate ter prosseguido naquele namorico e até algo mais sério poderia ter acontecido, mas a distância impedia e éramos muito jovens, quando voltei pra casa e Ana Lúcia apareceu esqueci Karen aos poucos. Quando contei que estava namorando a Valéria ela disse que também tinha conhecido outro rapaz já fazia alguma tempo. Quando soube novas notícias dela seria para saber que ela havia se casado, pois teria um filho. Aquilo não me entristeceu, mas deixou Karen como uma espécie de primeiro amor juvenil muito marcante.  Mais ou menos um ano depois seria eu a me casar passando pela mesma situação de Karen. Naquela época o casamento de ambos foi tema de diversos comentários e assuntos dentro da família de minha mãe. Com o passar do tempo perdi a proximidade e amizade com Karen devido um acontecimento.  

Ela não me odiava apenas por tentar comprar a fazenda. Ela tinha mais motivos para me odiar sendo que poderia continuar minha amiga. Numa festa de casamento de algum parente alguns anos depois, justamente naquela fazenda, ela estava casada e eu separado de Valéria. Naquela festa eu bebi um pouco a mais e resolvi convidar ela para dançar. O marido dela que era na época um bad-boy não gostou da idéia, e depois da dança com sua esposinha ele veio tirar satisfações comigo. Ele quis engrossar, eu quis desconversar, mas acabei dando um soco na cara dele em cheio e depois ele revidou. Depois de separada a briga, cometi o pior erro que poderia cometer naquela noite ao revelar, justamente para ele, que Karen havia tido algo mais comigo. Foi aquela baixaria e depois disso nunca mais nos falamos por longos anos.

Somente muitos anos mais tarde, devido a esse negócio da fazenda é que conversei com ela e fui destratado com todos os requintes de desdém que uma mulher pode esboçar. Não compreendia como um assunto desses tantos anos depois ainda despertava raiva nela. Ela deveria odiar o finado marido e não eu. Afinal de contas, ele não passava de um aproveitador barato que tinha seduzido uma garota rica e tola, depois de casados tinha traído ela inúmeras vezes segundos os comentários que circulavam em família. Isso tornava Karen uma espécie de paixão bandida ou um daqueles casos mal resolvidos. Antes dela se casar com o finado troglodita ainda tínhamos uma relação amistosa que sem dúvida mexia com ambos. Sempre que nos encontrávamos rolava um clima.

Pois bem, isso era passado consumado, o que me importa é o presente: Lá estavam meu pai e meu primo, e após o almoço, no cafézinho after-lunch, disse logo de cara disse para eles sbore o negócio da fazenda: -- Eu não quero mais saber daquela fazenda. Já estive lá meses atrás falei com Karen e ela só faltou me bater. Alessandro, irreverentemente me fez relembrar da briga citada, e alegou que desde então ela me odiava e talvez por isso não assinava a papelada. Não gostei da piada e tia Charlô reavivou ainda mais o passado com suas observações. Para mim aquilo soava como absurdo. Misturar o lado emocional com negócios não tinha nada a ver. Prova disso era estar ali sentando justamente com meu pai na mesa, ou até mesmo Bia, que depois da separação mesmo assim continuou minha sócia numa empresa.

Meu pai tomou a palavra e disse: -- Não vendi a minha parte para você porque o meu advogado disse que não poderia vender para um filho. Nem olhei na cara dele e disparei: -- Até parece que o senhor não sabe pra que existem laranjas. Ele continuou: Agora a situação mudou, toda documentação está em ordem e queremos saber quanto você paga. Uma das qualidades do velho era ser frio e metódico nos negócios e não se deixar levar por discussão alguma. Tinha aprendido muito nesse quesito viajando com ele quando era mais novo, assistindo de perto o modo sereno e objetivo que ele negociava. Aquele estilo Don Vito Corleone ao argumentar era a marca registra de papai.

Olhei fixo no Alex e perguntei: -- Tua irmãzinha assina dessa vez a papelada? Ele garantiu que sim devido ela estar cansada de cuidar da fazenda e devido o filho dela estar se tornando uma cópia do finado marido arruaceiro beberrão, sempre pedindo grana para ela e atormentando ela com alguma confusão. Alex segiu: -- Só falta acerta os valores e fechar negócio agora. Ao ouvir isso puxei um papelzinho do bolso e caneta e escrevi um valor que correspondia pouco mais da metade que valia a fazenda. Passei o papel para o Alex e ele repassou para meu pai ele colocou seus óculos de cordinha fez uma careta e replicou: -- Você poderia adoçar mais esse valor...

O velho sabia ser persuasivo e começou a destacar os pontos fortes da fazenda, falar da valorização do preço da soja ou do gado, dos investimentos na região e toda aquela conversa mole. Deixei ele falar a vontade e na tréplica disse: -- Adoço sim, pago à vista, mas só se baterem o martelo agora. O coroa me olhou sério, fez outra careta e mandou uma contra oferta. Em resposta disse que só topava aquele valor se ainda naquela semana ou na próxima no máximo me passassem a escritura. O velhote pediu para Alex telefonar para Karen e passar os dados e perguntar se ela concordava com aqueles termos. Minutos depois estávamos no escritório de casa para redigir o contrato. Karen tinha deixado de frescura e cedido. Marcamos a escritura para a semana seguinte e depois disso ficamos parte do resto da tarde papeando com tia Charlotte e depois levei eles para um passeio pela cidade. No começo da noite eles se mandaram felizes com três chequinhos gordos no bolso e tudo acertado.

Voltei para casa e telefonei para um cliente que possivelmente teria interesse naquela fazenda. Disse que tinha acabado de adquirir e só faltava os trâmites de cartório, ele se interessou e me pediu a localização exata e demais dados sem mencionar valores. Na mesma noite ele retornou a ligação e disse que possivelmente fecharia o negócio por determinado valor, o qual me dava uma boa margem de lucro. Antes de bater o martelo ele queria visitar a fazenda e ficou tudo acertado para a próxima semana. Como não havia interesse da minha parte nem da minha mãe em tornarmo-nos fazendeiros o melhor negócio era passar a frente aquelas fazendas, a da priminha juntamente com a parte que ainda era propriedade de mamãe.

Para fechar com chave de ouro aquele dia resolvi telefonar para Ágata e obter alguma segunda impressão dela sobre aquele final de semana em Buenos Aires. Pelo visto ela dormia cedo devido aos compromissos escolares, só me retornou a ligação na manhã seguinte. Convidei ela para almoçar ou jantar naquele dia, mas ela não pode aceitar devido a correria de final de ano no colégio. Aquilo parecia ser um sinal de que o que havia acontecido em Buenos Aires ficaria apenas como recordação. Senti que ela estava como habitualmente era: séria e low profile. Resolvi virar o último gole de whisky daquela noite e ir dormir.


Aquela negativa me fez teorizar alguma filosofia sobre o mulheril enquanto me revirava na cama: Ao passar dos anos convivendo diariamente com mulheres por todos os lados passei a crer numa teoria de que as mulheres até mesmo em relação aos homens são consumistas. Para elas ficarem tentadas a ingressar em qualquer xaveco furado ou relação o sujeito deveria tomar a iniciativa e fazer certo marketing e propaganda sutil de si mesmo como se fosse um sapato, ou bolsa, ou qualquer coisa que desperte a vontade feminina de consumo. Mulheres adoram estar em posse de coisas novas e experimentar sensações de ter algo que apenas elas possuem até o momento que encontram com uma amiga ou outra mulher e percebem que estas possuem algo melhor ou diferente que é novidade, seja um sapato, roupa ou até mesmo namorado. Acho que é por isso que as mulheres se vestem não apenas para si mesmas, mas também para as outras mulheres. Afinal de contas, mulheres são observadoras sagazes e detalhistas em qualquer situação e gostam de se sentirem únicas e exclusivas.

Apesar da futilidade aparente disso, a vida prática mostra que se um sujeito oferta alguma espécie de sonho de exclusividade como se fosse o príncipe encantado e ela a princesa, isso cria alguma expectativa nas mulheres, e essa falsa sensação de realidade é capaz de conquistar muitas delas. Em contrapartida tratar uma mulher como se ela fosse uma princesa encantada, um sonho de consumo, faz com que elas se sintam de alguma forma, desejadas com exclusividade e donas do pedaço. Apostando nessa teoria infundada percebi que isso por diversas vezes trazia resultado.

Ágata era uma daquelas que para ser conquistada precisava de algo mais. Como ela me conhecia a um longo tempo e por ser minha amiga, ela sabia o eu quanto poderia ser falsamente encantador no primeiro momento e cafa posteriormente. Talvez isso tornasse a idéia de tentar ganhar a confiança dela no campo amoroso uma obsessão que foi me atormentando desde que ela pisou em Buenos Aires. Não havia motivos para nutrir expectativas com ela, nem mesmo bancar o conquistador barato, mas a idéia de fazer aquela mulher tão dona de si mesma ao menos cogitar algo a mais comigo tornava um desafio obsessivo digno dos canalhas mais vis. Bancar o Visconde de Valmont tentando seduzir Madame de Volanges para satisfazer o próprio ego seria a imagem perfeita para isso.

Por outro lado, levar avante um plano canalha desses já não fazia mais a minha cabeça como antes. Seja por acaso ou premeditado, havia conquistado diversas mulheres com base nessas estratégias e com base em meros sentimentos de conquista. Revendo o passado percebo que Fabrícia correspondia à fantasia de obter êxito com duas irmãs, Aline se encaixava no papel da eterna secretária e amante fiel, Giuliana se adequava na figura da mulher sonhadora que cede aos encantos dum conquistador barato e poderia ser uma até mesmo uma boa esposa que faz vista grossa para as infidelidades do marido. Ao que tudo indicava, só tinha sido honesto mesmo com Bianca, que surgiu como uma exceção raríssima à regra da minha conduta de pseudo Casanova.

Isso fazia sentido ao passo que todas as farras e vida de boêmio promiscuo passavam a ser cada vez mais tediosas, ao ponto de perderem o sabor e se tornarem algo corriqueiro e comum que preenchia o ego e a cama apenas. Depois que a paixonite por uma nova conquista passava e cessava o ápice da paixão tudo se tornava fastidioso. Conviver dessa forma com as mulheres aos poucos perdia o encanto inicial e tudo se tornava apenas prazer sem o menor sentimento. Como nos negócios tudo parecia que não gerava apego ou construção de algo maior, apenas se visava o lucro e nada mais.

Na medida que percebia cada vez que Bianca era de certa forma a mulher na medida certa por quem ainda sentia algo totalmente diferente das demais, isso me assombrava e fazia repensar em tudo que havíamos passado juntos. Ela não era ciumenta extremada nem mesmo uma mulher que vive fechada em si mesma pensando no próprio umbigo e pequenos caprichos. O jeito leve e amável dela só perdeu o encanto quando ela ficou depressiva e sem reagir perante aquela situação por mais esforços que tivesse realizado em manter tudo com era antes.

Nessas horas me sentia como Tomas de A Insustentável Leveza do Ser, tendo que lidar com a leveza e o peso do mundo real a minha volta, tendo que optar entre uma Teresa ou as inúmeras Sabinas que conquistei ou que poderia ainda conquistar. Em suma, parecia que havia chegado um momento na minha vida que alguma coisa precisava mudar para que tudo harmonizasse o peso e a leveza.

Precisava negociar comigo mesmo um acordo para que tudo tivesse um sentido mais forte e mais concreto. Como viagem de barco que seria meu divã havia fracassado, precisava de tempo e paciência para descobrir o que seria o exato a fazer. Deixar as coisas fluírem como elas aconteciam sem forçar nada parecia ser o mais destemido a fazer tendo em vista que isso me manteria ao mesmo tempo livre de escolhas repentinas e aberto a novas possibilidades.

Fosse Bianca um amor renovado ou até mesmo remotamente Ágata um novo amor, seria o tempo descobrir quem ocuparia esse novo espaço dentro da minha vida. Poderia até surgir alguma outra mulher que virasse a minha cabeça, mas mesmo assim, tudo teria que ocorrer naturalmente e fora dos padrões do Casanova que habita em mim. Isso seria um esforço tremendo, mas o desafio me motivava a me tornar uma pessoa melhor e mais madura.

Depois de ter comprado aquela fazenda que não me importava muito, estava na hora de cuidar da minha fazenda interior e preparar o solo para uma nova colheita. Desta vez, iria plantar sementes diferentes e o tempo poderia se encarregar do restante na medida do possível. 

"A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas ..." [Manoel de Barros] 
Acordei naquela manhã me sentindo um traste e com preguiça de sair de casa ou ir trabalhar. Abri a cortina e o céu estava cinza ameaçando uma tempestade. Fiquei ali olhando a paisagem e me lembrando daquele ano – mais ou menos quando tinha treze ou quatorze anos - que choveu tanto que tinha se tornado quase impossível treinar golfe aos finais de tarde. Troquei os tacos pelo violão e estudo de partituras com a intenção de ingressar no conservatório. Passava horas treinando dedilhados, solfejando, tendo aulas de violão com aquele professor magrelo e esquisito chamado Dionísio.

O sujeito falava baixo, era introvertido e dava aulas de violão aos finais de semana para obter uma renda extra. Sua esposa era magra como ele e sem dúvida o que faltava de simpatia nele sobrava nela apesar daquele rosto quase cadavérico. As aulas apesar de entediantes davam resultados rápidos. Não tinha muita conversa com o sujeito que além de falar baixo, só falava no máximo sobre teoria musical e corrigia pacientemente algo errado na execução dos exercícios e músicas. Como sempre chovia demais naquele ano, o violão se tornou companhia diária e obrigatória juntamente com os velhos LPs de música clássica de mamãe e os de rock de meu irmão. Aos poucos tudo que escutava era transferido para o violão ou guitarra.

Quando não estava estudando música estava lendo desde uma banal enciclopédia ou livros de Marcelo Rubens Paiva ou qualquer outro autor, ou o melhor do dia: telefonar para Karen e passar alguns minutos falando abobrinhas. Esse breve momento de recordações nostálgicas seria um bom menu passar o dia ocioso em casa num “dolce far niente”, mais a inspiração e planos foii interrompida pela vontade de fumar um cigarro e por Maria. Fumei entrei no banheiro liguei o chuveiro e de longe escutei Maria berrar para levá-la ao colégio. Como sempre estava atrasada.  Tomei um rápido banho coloquei uma roupa em tons cinzas para combinar com aquele dia nublado e fui levar Maria para o colégio bocejando pelo caminho. Chegando lá sob o pretexto de filar café na secretaria encontrei Ágata atrás duma pilha de pastas concentrada no trabalho. Ela estava de óculos, rabo de cavalo e lápis entre os lábios, parecia mais uma estudante e não uma das diretoras do colégio.

Nesse momento fiquei lembrando de quando a conheci. Ela era extremamente tímida e caipira, tinha a pele um pouco menos clara devido a vida no sítio, usava sempre roupas que tinham cores fortes e seu jeito de falar sempre foi compassado e tranquilo. Nunca a vi irritada com nada. Agora aquela mulher ali atrás da mesa cheia de pastas e envelopes nem lembrava mais aquela garota alta e desengonçada que assim como eu casou-se por causa da gravidez não planejada logo com o primeiro namorado. Não podia esconder mais aquela sensação de que algo entre nós poderia ter acontecido se o nosso destino tivesse se cruzado de outra forma. Sensação que vinha de muito antes, desde o passado remoto quando ainda estava na faculdade, aquelas férias de meio de ano de mais de dez anos atrás agora remexia comigo, com certeza era isso que gerava aquela estranha obsessão em Buenos Aires – sensação que começou depois duma noite que saí passear com ela e ambos acabamos bêbados passando a noite juntos, e minha irmã nos pegou pela manhã de surpresa no quarto quando apareceu visitar minha mãe que estava doente. Minha irmã nos deu um belo sermão moralista e nunca mais tocamos naquele assunto depois daquilo.   

Precisamente nessa época os caminhos do destino mantinham Ágata brigada com o namorado com que viria se casar pouco tempo depois devido uma gravidez inesperada, e eu que já havia me separado de Valéria e namorava Fabrícia sem maiores compromissos até então, estava em casa de férias devido minha mãe estar adoentada naquele período. Assim, o destino mais uma vez agiu por seus caminhos tortos e inesperados e fez que aquela noite ficasse apenas como uma lembrança sobre dois jovens imaturos. Ambos estavam carentes, e como dois jovens sem noção alguma de responsabilidade e movidos pelo álcool e hormônios da juventude, depois de sucessivos flertes e intenções veladas de algo mais entre nós no transcorrer do mês, acabamos na cama sem pensar em mais nada ao nosso redor. Após isso, ela viveu a vida dela, e a minha me levou para longe dali por muito tempo. Em Buenos Aires havia uma remota chance de que algo parecido acontecesse, mas Ágata era outra pessoa e eu também. O que importava era o presente, não tinha como tais coisas se repetirem, o passado poderia viver em nós apenas como recordação. Tudo indicava que seria assim.      

Quando ela percebeu que estava ali olhando ela como um idiota com copinho de café na mão, essas lembranças estavam à tona na minha memória. Mas Ágata sequer se levantou ou conversou comigo, apenas me saudou com um bom dia, sem esboçar surpresa ou um leve sorriso e enfiou novamente a cara naqueles papéis idiotas. Parecia que ela me evitava, parecia que aquelas noites juntos não tinha sido nada mais do que apenas uma noite, sem tanta relevância; apesar da bronca de minha irmã ter causado constrangimento para ambos perante minha mãe. Buenos Aires parecia tão somente um simples final de semana em boas companhias e nada mais. Não adiantava me iludir com Ágata, nem repensar mil coisas obsessivamente que envolviam acontecimentos do passado e presente.

Saí dali irritado com aquela atitude de Ágata. Pelo visto, nem o passado, e nem tudo que tinha acontecido naquele final de semana anterior não tinha o menor significado para ela como havia previsto. Apesar de não ter criado expectativas tal fato serviu-me para piorar o meu humor naquela hora. Minha irritação foi interrompida pelo celular tocando, não reconheci o número nem a voz feminina do outro lado e a ligação chiava. Perguntei quem era, a voz aguda duma mulher dizia apenas em contra resposta: Não lembra mais de mim primo? Quando me toquei que era Karen fiquei surpreso e intrigado. Afinal, porque raios ela estaria a me telefonar? Disse que a ligação estava péssima e que iria retornar do fixo. Fui até a sala da minha mãe e mais uma vez ao passar por Ágata ela apenas me olhou sem dizer nada. Fiquei mais fulo da vida com aquilo, assim que entrei na sala de mamãe, que estava dando aula, chutei o baldinho de lixo que foi parar no outro canto da sala e soltei um palavrão entre os dentes.

Sentei-me rodando na cadeira giratória, pedi para a telefonista fazer aquela ligação ainda intrigado porque Karen haveria de ter ligado sendo que nós tínhamos falido definitivamente nossa amizade por causa daquela fazenda. Naquele intervalo de tempo resmunguei: “Hoje é o meu dia, quer ver que aquela porcaria de venda de fazenda melou por causa dessa desvairada”. Ao me passarem a ligação Karen estava inesperadamente amável comigo, como era nos idos tempos de garota, inclusive se desculpou ao final por ter me tratado mal da última vez que estive lá tratando daquele assunto meses atrás. Ela apenas queria saber a data exata que iríamos lavrar a escritura, se precisava de documentos novos porque fazia cinco que tinha enviuvado etc. Ainda pediu para levar mamãe e tia Charlô para visitá-la nessa ocasião. Esclareci as dúvidas dela e disse que estaria lá possivelmente na próxima segunda-feira para levar um novo comprador conhecer a fazenda. Tudo combinado. Bati o telefone na cara dela e saí o mais rápido que pude daquele colégio, pois a lembranças com Ágata e Karen pareciam querer me torturar cogitando uma possível vida que não tive ao lado delas por inúmeros fatos e acasos.

Após o almoço, marquei de ir para Sampa pilotando um teco-teco assim que as nuvens dessem trégua. Ao final da tarde o tempo havia melhorado e voar iria me acalmar com certeza. Fiquei matando o tempo aos transcorrer da tarde tomando cafezinhos sucessivos na lanchonete do aeroporto, ao cair da tarde, céu sem tantas nuvens,  enrei no aviãozinho e decolei. Voei o mais rápido que aquele aviãozinho que era do meu pai permitia. Recordo que ele comprou aquela mesma aeronave no Paraguai de um fazendeiro tão libanês quanto ele. Nessa ocasião o primeiro marido de minha irmã estava junto e logo no primeiro vôo o velho nos levou para aquela fazenda que agora era minha, ao menos temporariamente. Fiquei pensando como que a vida dá voltas. Lembro de ter ido naquela fazenda muitas vezes quando criança e passado bons momentos com Karen, dentre outras lembranças os poucos momentos junto dela eram de recordações marcantes. Foi naquela mesma terra que aprendi as primeiras lições de pilotagem com um dos funcionários da fazenda que fazia vôos semanais de Campo Grande até Corumbá. Poucos anos depois retirei o brevê na época que cursava a faculdade junto com meu irmão.

Cheguei em São Paulo e fui jantar na casa de Marcos meu sócio. Tomamos umas cervejas, fizemos nós mesmos uma macarronada e colocamos a conversa em dia discutindo algumas metas para o próximo ano e outras coisas banais. A esposa dele assim que chegou apresentou uma amiga, que apesar de bonita, não me despertou interesse algum. Ficamos batendo papo até por volta de uma da manhã e depois disso me mandei para um hotel descansar. De manhã, bem cedo, liguei para Aline que morava no meu apartamento paulistano, perguntei se tinha alguma roupa minha guardada por lá. Passei no apartamento, tomei um banho, coloquei um terno decente e fomos para o escritório juntos. Passei o dia trancafiado por lá resolvendo alguns assuntos e analisando quem seria uma possível substituta de Aline.

Escolhi duas candidatas para vaga dela e deixaria a própria Aline encarregada de treinar elas. A primeira escolhida era uma moça loira de cabelos lisos, olhos claros, com um corpão esbelto, aparentemente era evangélica devido os modelos de roupas que usava, a bela loira atendia pela graça de Daniele. A segunda era mais moderninha, com um visual mais ousado, alta e magrinha, cabelos castanhos lisos longos quase na cintura, seios grandes, tinha acabado de se formar, esta candidata se chamava Priscila. Fui com a cara das duas, elas pareciam bastante articuladas numa pequena entrevista que tive com cada uma. Parecia que a presença de Aline na minha vida estava mesmo com os dias contados.

No final de tarde do dia seguinte fizemos uma pequena confraternização e pude avaliar melhor as duas candidatas a vaga de Aline. Sentia-me o Tony Starks sendo paparicado por aquelas duas novatas e Aline parecia não ter gostado da idéia de ser substituída por alguma delas, possivelmente achando que além da vaga dela no escritório tomariam o lugar dela na cama e no apartamento. Daniele era divorciada e tinha dois filhos, apesar dos vinte nove anos de idade, embora fosse mãe e tivesse quase trinta parecia mais nova. Além disso, era mais tímida e menos falante do que Priscila, a qual tinha mais desenvoltura para falar e impunha mais presença e atitude. Finalizada aquela confraternização voltei para o apartamento e passei o resto da noite na companhia de Aline, como apenas bons amigos, assistindo filmes e tomando sorvete. Para aqueles que crêem que amizade entre um homem e uma mulher é fato impossível, a minha relação com Aline parecia contrariar essa crença.

Na manhã seguinte acordei com os movimentos de Aline se preparando para sair, aquele barulho secador de cabelo que vinha do quarto ao lado me despertaram dum sonho que estava tendo com Paolo no barco. Resolvi telefonar para ele e contar que sonhei com ele. Conversamos um pouco sobre nosso último passeio e ele queria saber se a coisa havia andado com Ágata. Contei que ela depois daquele final de semana esplendoroso ela tinha se afastado, me tratava como sempre me tratou; com raros momentos de proximidade e pouca conversa. Quando percebi que Aline tinha saído, resolvi sair do quarto e fazer um café. Estava com vontade de curtir o meu apartamento andando apenas de cueca por seus aposentos com aquela caneca de café como única testemunha. Bisbilhotei o quarto de Aline e nada de empolgante havia por ali. Nem mesmo pistas sobre algo mais na vida dela. Somente um bilhete sobre a mesa da sala de jantar dizendo que passaria o dia fora com as amigas dava algum esclarecimento sobre alguma coisa da sua vida. Acreditava que ela pudesse ter arrumado um namorado, mas isso pouco importava agora.  

Naquele sábado não tinha planos para o resto do dia, pensei em ir ao golfe clube, mas devido uma contusão ainda não curada totalmente desisti da idéia. Passei a manhã no apartamento mexendo com meus pertences que estavam guardados e depois do almoço por ali mesmo resolvi ir visitar Bianca de surpresa e ver meu pequeno. Peguei a estrada e cheguei no final da tarde na casa de Bianca. Queria fazer uma surpresa e testar sua reação ao me ver. Quem sabe conversaria com ela e pediria finalmente para ela voltar para minha vida dizendo que ela era mulher que realmente amava apesar de tudo que havia ocorrido antes.

Todavia, seria eu a ser surpreendido com um carro estranho estacionado na garagem dela. Aquilo carro já me deu calafrios na espinha assim que o avistei tomando minha vaga habitual na garagem. Fiquei temeroso de ser algum namorado que ela havia arranjado. Olhei dentro do carro e com certeza aquela pick-up era carro de homem. Tinha um chapéu de vaqueiro no banco do carona e um adesivo do Santos no parabrisa e estava ainda com um pouco de lama e poeira de estradas de terra.

Toquei a campainha e a empregada de Bia atendeu espantada por me ver ali naquele dia sem o menor aviso prévio. Logo Ivan apareceu no seu cantinho cheio de brinquedos e Bianca também com a mesma reação da empregada. Parecia que estavam todos ali; menos o sujeito dono do carro. Bianca parecia desconcertada e pediu para empregada cuidar de Ivan e me chamou para ir numa salinha ao lado. Fechou a porta e ainda com aquela cara de que algo estava sendo omitido, perguntou como eu estava e logo perguntou se eu tinha visto o carro na garagem. Se ela disse que era de algum parente ou amigos que estavam de visitas tudo estaria esclarecido numa boa. No entanto, ela realmente confirmou a minha primeira impressão, disse que tratava do carro do namorado dela que estava passando visitá-la.
Nesse momento eu achei que iria ter um algum baque cardíaco, meu peito apertava, o ar faltava, enquanto ela explicava que tinha arrumado um namorado acerca de dois meses. Realmente o sujeito não estava por ali, tinha saído resolver um assunto em outro lugar. Resolvi me mandar dali sem esconder o que estava sentindo, porém não disse nada para ela. Bia tentava colocar panos quentes, me deixar calmo, mas nada o que ela dissesse faria efeito. Saí dali sem me despedir do Ivan, que brincava no seu cantinho de brinquedos, entrei no carro e logo que virei a esquina não contive o choro. Pois é, marmanjos também desabam em lágrimas às vezes.

Peguei a estrada de volta para Sampa, cheguei de madrugada, entrei no apartamento e Aline tinha deixado outro bilhete dizendo que estaria na balada mais uma vez com as amigas. Peguei uma garrafa de vodca e passei a beber e fumar sem parar. Fiquei naquela varanda velha de guerra, que era a varanda das lamentações, fiquei olhando ao longe as luzes da cidade e repassando mentalmente toda a história que tive com Bianca até aquele dia. Esforçava-me para encontrar alguma coisa que me fizesse deixar de sofrer e parar de pensar naquilo. Logo Aline chegou junto com uma amiga, assim que notei o movimento e conversas no corredor fui para meu quarto. Me tranquei no quarto, esperei elas pegarem no sono, e fiquei na cama olhando para o teto entornando a garrafa de vodca.

Amanheceu e eu estava me sentindo implodido por dentro. Cansado, meio zonzo de tanta vodca pura e amargurado na alma. Chequei o celular a havia algumas ligações e mensagens de Bianca pedindo notícias minhas. Enviei uma resposta que estava bem e que não era preciso se preocupar. Cinco minutos depois o celular toca, atendo, e ela preocupada queria saber como estava. Disse que estava tudo bem e ela replicava dizendo que sabia que não estava. Não queria falar com ela e desliguei o celular. Tomei uma ducha e finalmente peguei no sono leve de embriagado.

Dormi umas três horas apenas, acordei, arrumei minhas coisas e deixei um bilhete de despedida para Aline avisando que tinha partido naquela manhã dizendo que tinha compromissos ao longo do dia. Peguei o carro fiquei dirigindo meio sem rumo dentro da cidade. Queria fazer o tempo passar. Era apenas isso que precisava: Que o tempo passasse como sempre passa e torna opaca as dores mais duras que experimentamos.

Ainda recordava de tudo em Bia, do gosto dos lábios dela na minha boca, ainda a pouco tinha sentido no ar o perfume que ela sempre usava, ainda era difícil entender o que tinha se passado. Tinha estado com ela há poucas horas como um fantasma do passado testemunhando o rosto dela dizendo que não queria me magoar e que havia alguém novo em sua vida. Pensava no rosto dela. Rosto que não beijei naquele dia, como sempre fazia, e com isso a alma ia se rasgando em retalhos, e a mágoa queria me aniquilar a cada segundo. Parecia que tudo tinha se petrificado no espaço e no tempo, que tudo que existiu antes acabava por morrer como uma flor no jardim por falta de cuidados. Nessas horas não é difícil cair em desespero e ver tudo se cobrir de trevas ao seu redor e flutuar em meio a recordações do passado quando tudo era calmo e feliz. Ainda assim, amava Bia, mas não queria mais sofrer por amar ela, nem mesmo culpar ninguém por tudo ter acontecido como aconteceu de errado.      

Escutava vez após vez a mesma música enquanto dirigia: You’ve lost that loving felling do Elvis. Aquilo não me acalmava, mas me dava uma overdose de saudade e de esperança tola que apenas os idiotas que amam podem compreender.  Parei num posto de gasolina abastecer e comprar cigarros, depois parei em algum lugar comer um mísero hambúrguer com fritas e refrigerante que embrulhou ainda mais o estômago. Naquelas horas estava tudo uma merda, a vida que eu ainda esperava acontecer tinha acabado antes de começar, e para piorar começou a chover. Fui ao shopping comprei uma garrafa de tequila e outra de whiskey, nem bebi, estava de saco cheio de beber naquela hora.  Pensei em rezar, mas Deus certamente não iria me entender naquela hora, pois estava irado a ponto de entrar numa boa briga com seus cupidos decadentes.

Fiquei numa mesa tomando milk shake, olhando aqueles casais e famílias passeando, fazendo compras tentando entender como a vida era mesquinha a ponto de muitos viverem numa farsa teatral da felicidade pré-fabricada por certos conceitos aceitáveis por todos. Não fiquei filosofando muito tempo, filosofar nessas horas é o pior dos insultos com a própria razão.

Passei a relembrar das duas vezes que havia estado com Ágata, uma no passado distante - época que ainda estava casado com Valéria - e a outra no passado recente poucas semanas atrás. A primeira vez que acabamos indo para cama ressurgiu na memória como se fosse um álbum de fotos encontrado ao acaso no fundo duma gaveta qualquer durante uma faxina.  Naquela metade de ano, a razão da minha visita se devia mais ao estado de saúde de minha mãe, do que propriamente a época de férias da faculdade e folga do restaurante que estava em reformas, passaria aquele mês por lá devido a súbita doença cardíaca de mamãe. Ágata tinha ocupado o meu lugar na casa depois que fui morar com Valéria em São Paulo. Durante o dia ela ajudava minha mãe com os afazeres dela e a noite cursava pedagogia na faculdade local. Sempre foi muito esforçada e motivada ao contrário do futuro marido que era dado aos bares e festas de rodeio. Numa sexta à noite, sabendo que Ágata tinha brigado com o namorado por diversas vezes e estavam separados, e depois de muito flertar e insinuar intenções visando aquela bela loira, fui buscá-la ao final da sua última aula no semestre como tínhamos combinado de antemão. Ela estava alegre, e não demonstrava mais nenhum pesar pela briga com o namorado como nos dias anteriores logo que cheguei.

Convidei ela para sairmos comemorar o final do semestre. Ágata havia concluído o primeiro período da faculdade de pedagogia, e eu estava no meio de mais outro ano de estudos e trabalho. Precisava de descanso e duma nova companhia feminina. Após um ano e meio estudando e trabalhando naquele restaurante e na agência, estes seriam os primeiros dias de folga que teria em meses antes de tudo recomeçar novamente. Levei Ágata para uma das danceterias que tinha fama na cidade naquela época, pois sabia que ela adorava dançar. Passamos algumas horas nos divertindo e bebendo muito daqueles hi-fis que adoçavam ainda mais a nossa noitada. Quando ela percebeu que estava meio alta devido tantos hi-fis pediu para ir embora. Atendi o pedido dela prontamente, mas ao chegar em casa não resisti e quando ela me deu boa noite perguntei se não merecia um beijo de boa noite, ela ficou um pouco constrangida aproximou-se e me beijou rosto e entrou na casa. Aquele beijo estava fajuto demais para o meu gosto, ainda mais para minhas intenções com ela. Reencontrei ela na cozinha bebendo água e reclamei do beijo no rosto. Ela tirou o copo da boca, abriu os braços e perguntou: -- O que mais você queria? Um beijo na boca? Aproximei-me dela como se também fosse beber água, arrisquei um beijo na boca dela de surpresa. Isso funcionou, ficamos no meio da madrugada naquela cozinha nos beijando até que ela como sempre ficou com o corpo quente e aquele beijo que começou na cozinha terminou no quarto que foi meu, mas agora era dela.

Ágata não hesitou, tirou sua camiseta sobre a cabeça, deitou-se na cama apenas de jeans e aquele sutiã branco como ela, me chamou com o dedinho e mordendo os lábios, deitei-me sobre ela beijando sua boca ainda com um pouco do gosto de hi-fi, desabotoei o sutiã e chupei os seios durinhos dos quais saltavam pequenos biquinhos, arranquei aquela calça jeans justa, ela me despiu sem tanta pressa, lentamente tirou minha camiseta entre um beijo e outro, abriu o zíper da minha calça e acariciou minha cueca que explodia de tesão. Rolamos na cama, Ágata já estava sobre mim ainda de calcinha com aquele par de coxas quentes, barriga quente, seios quentes, arranquei a calcinha dela e ela minha cueca, em seguida sem pensar sequer em apagar a luz do quarto já estava dentro dela e ela sobre meu quadril mexendo com todo vigor molhadinha me levando as alturas na ânsia por um orgasmo rápido. Entre uma tentativa e outra de não gemer alto e acordar minha mãe, ela gemeu alto e tombou sobre mim após um orgasmo seus cabelos dourados cobriam meu rosto, e ofegante Ágata disse ao meu ouvido: -- Que loucura!     

Aquele ritual se repetiu até domingo, quando por puro descuido e por estarmos muito mais embriagados, chegamos em casa e transamos como da primeira vez, e pela manhã minha irmã nos flagrou dormindo jutinhos sem lençóis expondo nossos corpos para o olhar quem passasse diante daquela porta entre aberta. Tudo aquilo poderia ser definido como “Faz parte do meu show” do Cazuza.

Depois daqueles dias de amor caseiro, fui embora, e Ágata se casou com seu namorado alguns meses depois, e mesmo achando que aquela criança que ela carregava no ventre pudesse ser fruto daquelas três noites inconsequentes, nunca perguntei para ela sobre isso nada, e nem ela jamais tinha me dito nada sobre isso. Só sei que ao ver Ingrid ao lado Maria em Buenos Aires, depois que o garçom da confeitaria achou que fossemos uma família de turistas, me fez repensar sobre o assunto quando retornamos ao Brasil. Uma filha duma ruiva, e outra filha duma loira, ambas concebidas e nascidas na mesma época, com feições parecidas, quando estavam lado a lado e podia ver os detalhes do rosto de cada uma delas e sempre tinha algo em comum entre elas a cada vez que olhava para as duas. Aquelas noites com Ágata me deixavam com saudade, mas sua gravidez posterior sempre me deixava intrigado. Parecia que havia um tratado de silêncio que nunca fora quebrado sobre esse assunto ao passar dos tempos. Minha mãe jamais tinha tocado no assunto, Ágata sequer esbarrado nessa pauta; e minha irmã que tinha nos flagrado menos ainda.  Evitava pensar nisso, tanto depois da viagem, quanto naquela hora, ali naquele shopping tomando milk shake.

Joguei o copo de milk shake no lixo e segui meu destino. Fui parar num hotel ali perto. Tinha resolvido dormir e descansar daquela neurose ambulante que tinha me tornado em poucas horas. Acordei no meio da noite, fumei mais uns cigarros, tomei um gole de whisky, fiquei assistindo TV até cair no sono novamente. Acordei o sol já batia quente na janela, enfiei a cara no chuveiro e fui trabalhar de ressaca.
O escritório parecia um mundo paralelo onde fiquei dopado trabalhando até que me dei conta que Aline tinha me convidado para almoçar. Disse que estava com dor de cabeça e que iria ficar por ali mesmo. No meio da tarde fui para o aeroporto peguei o primeiro vôo para Campo Grande. Chegando naquela cidade o calor infernal me deu enjôo. Fiquei no banheiro lavando o rosto e jogando água na nuca. Telefonei para Karen vir me buscar naquele caldeirão. Ela chegou no lugar combinado uma hora depois, quando se aproximou de mim só vi as botas de cowboy dela e aquela sombra que seu corpo fazia sobre mim. Ergui a cabeça, olhei num misto de gratidão e espanto e lá estava ela falando e falando sem parar, perguntando sobre isso e aquilo, enquanto isso respondia no modo automático sem formular nenhuma pergunta para ela.

A casa dela ficava bem longe dali e tive que aturar aquela ladainha sobre o calor que estava fazendo, sobre a fazenda que estava deixando ela louca, e sobre os planos dela se mudar dali. Na hora do jantar, depois dum banho gelado, ela serviu uma porcaria de salada com maionese e um assado acebolado. Aquilo não descia nem por decreto. Karen pelo visto cozinhava mal ou eu estava de mal até com a comida. Comi pouco, e fiquei na varanda da casa dela tomando cerveja ouvindo novamente aquele papo dela sobre a fazenda, sobre o calor, sobre os cinco anos de viúva aturando o filho baladeiro e suas peripécias que eram quase um caso de polícia. Sobre o nosso passado, nem um piu. Me enchi daquilo e disse que iria dormir pois estava cansado da viagem.

Acordei cedinho e Karen estava no banho, fui para a cozinha e fiz um café bem forte. Não confiaria no café dela nessa altura do campeonato, ao menos um café decente eu me julgava merecedor. Quando a empregada dela chegou, uma indígena marrom de meia idade, que fui me tocar que estava num lugar onde não adiantava muito a tecnologia do ar condicionado. A índia abriu a porta e o calor entrou como visita indesejada. Karen saiu do banho, e nada discreta com aquela toalha na cabeça sentou-se a mesa e tomou uma caneca de café sem leite e criticou meus hábitos de fumante quando procurava pelo maço de cigarros perdido na mochila. Tudo aquilo me fazia sentir como um idiota fora do meu mundinho habitual. Finalmente quando saímos dali rumo à fazenda e deixamos aquela indígena esquisita que só olhava e nada falava na casa, com isso me senti mais reconfortado não por muito tempo. Karen e suas canções sertanejas não ajudavam muito no trajeto. Aquela mania deselegante de cantarolar acompanhando aquele massacre sonoro na presença alheia e batucando no volante quase me fez mandar ela calar a boca. Ela parecia feliz com alguma coisa, enquanto eu continuava apático ainda anestesiado com os acontecimentos na casa de Bianca.  

Depois de quarenta minutos de suplício na estrada esburacada comendo poeira agradecia por ela correr muito como se fosse uma exímia pilota de off road. Chegamos na fazenda o sol batia quase a pino, sem dó nem piedade, ela pegou um chapéu enfiou na minha cabeça sem a menor cerimônia, entrou naquele casarão antigo dizendo que  faria uma limonada gelada. Aquele maldito chapéu me fazia lembrar do chapéu que tinha me deparado na garagem da Bianca. Sinceramente tudo aquilo apesar de me distrair, fazia o meu ódio crescer sempre que avistava um caboclo do mato de chapéu.

Karen serviu a bendita limonada gelada e valendo-se de seu jeitinho espontâneo tirou aquele par de botas e deitou no sofá com os pezinhos apoiados no encosto e começou a tirar uma soneca. Fiquei observando primeiramente aqueles pezinhos dela que realmente eram bem cuidados com todos os dedinhos bem alinhados e suaves. Sinal ela tinha alguma vaidade apesar daquele jeito aparentemente bronco que ela transfigurava em determinados momentos. Depois de tanto tempo morando em ambiente rural ela tinha pegado o estilo durão daquele povo e seus trejeitos no modo de falar e agir. Corri os olhos pelo corpo dela e parei no queixo, o queixo típico da família com um pequeno furinho. Seus lábios não eram, nem muito finos nem muito grossos, seu nariz arrebitado, suas sobrancelhas bem delineadas e cílios grandes, tudo isso dava para Karen os traços clássicos das mulheres da família. De fato era uma bela mulher, e o passar do tempo tinha melhorado muita coisa nela sem dúvida.                          

Fiquei ali naquela sala do casarão admirando ela dormir alguns minutos até terminar com a jarra de limonada. Peguei minha pasta e comecei a organizar alguns papéis referentes aos funcionários da fazenda. O futuro deles de certa forma estava ali em minhas mãos, muitos já estavam de aviso prévio conforme a papelada que Alex havia adiantado. Havia marcado com eles uma reunião para aquele final de tarde para deixar tudo às claras para não haver nenhuma reclamação posterior. Passaria os dias ali resolvendo aquelas pendências nas três fazendas que novamente tinham voltariam a ser apenas uma como nos velhos tempos em que o velho libanês e meu tio - pai de Karen - eram sócios. No dia seguinte receberia a visita do possível comprador e depois passaria finalmente a escritura.

Karen adormecida profundamente no sofá parecia a tranqüilidade em pessoa, nem de longe lembrava aquela mulher agressiva e destrambelhada da última vez que estive ali. Saí na varanda para fumar um cigarro e percebi que havia esquecido os cigarros na casa de Karen na cidade. Lembrei que havia uma venda ali por perto na estrada, aproveitei a chave da pick-up na ignição e fui até lá comprar um maço. Ao entrar na antiga venda que parou no tempo logo fui reconhecido pelo dono que ficou dando prosa sobre os boatos da venda da fazenda. Deixei ele especular a vontade e respondi que pelo jeito as coisas iriam voltar a ser como eram antes. Ele ficou contente e como não havia nem Marlboro, nem outra coisa parecida ele me fez um palheiro de fumo de corda que deu para matar a vontade de fumar. Após esse breve passeio voltei ao casarão.

Karen havia acordado e tomado um banho estava sem aquela toalha horrenda na cabeça dessa vez.  Os cabelos molhados e presos que deixavam o pescoçinho dela ainda mais amostra, e isso somado com aquele rosto bem feito deixavam ela mais jovial. Dona Candoca a cozinheira de longa data da casa, serviu um almoço simples e delicioso, nem de perto parecia aquele grude servido na casa de Karen. Para melhorar o cenário a neta dela uma mestiça magra e de cabelos compridos deixava amostra aquele bumbum empinado enquanto fazia algo na pia. Na sobremesa goiabada caseira com queijo deram o toque final ao almoço suculento.

Retornando para a sala fiquei conversando com Dona Candoca que contava sobre o tempo que meu pai frequentava a fazenda e trazia suas visitas, dentre as quais sua amante para passar os dias com ele. Dona Candoca contava isso com ares de indignação e dizia como que uma santa como a minha mãe tinha aturado tanto tempo aquele sovina que sempre atrasava o pagamento dela. O pai de Karen não ficava nada a dever ao meu pai nesses quesitos segundo a velha cozinheira com quase oitenta anos nas costas. A simpática velhota contadora de causos de família depois disso voltou para cozinha cuidar da vida dela.

Retomei o serviço com aquela papelada e Karen me fazia companhia mais uma vez estirada no sofá. Dessa vez um shortinho deixava boa parte de suas coxas amostra e entre uma olhada e outra na papelada, espiava aquele par de pernas que combinavam com seus pezinhos de fada. Ficamos conversando sobre a vida dessa vez, Ela contou tudo que passou ali sozinha depois que o marido manguaceiro morreu num acidente de trânsito quando voltava dum rodeio junto duma sirigaita qualquer. A sirigaita tinha sobrevivido e isso deixava Karen de certa forma sem entender alguma coisa sobre seu próprio destino. Ela tinha se casado assim como eu, em decorrência duma gravidez inesperada, sendo apenas um ano mais velha. O filho dela tinha quase a mesma idade que o meu.  

Falei um pouco sobre minha vida sem dar detalhes e sem mencionar sobre o último episódio ocorrido naquele final de semana com Bianca. A pior coisa nessas horas é ouvir conselhos e condolências idiotas sobre finais infelizes de relacionamentos e ter que aturar psicologia de fundo de quintal sobre o fato.

Karen ainda me perguntou se tinha alguma namorada e retruquei a pergunta para ela, a qual ela respondeu: ­- Só tem traste nesse fim de mundo, Deus me livre arrumar um desses peões fedidos. Já sofri demais casada, não quero mais saber disso! - O que me espantava era que ela sempre fora extremamente atraente e cobiçada por vários garotos e até homens mais velhos nos idos tempos que morava no interior de São Paulo, porém, depois que se bandeou para o Mato Grosso do Sul, e após a morte fatídica do dito cujo manguaceiro não tinha se relacionado com mais ninguém pelo visto. E caso tivesse havido algum caso depois disso; isso era um tremendo mistério que ela não revelava pelo jeito.

Aos poucos ela foi se abrindo e dizendo que queria se mudar dali com a grana recebida pela venda da fazenda e que pretendia morar junto com sua mãe por uns tempos e mandar o filho encrenqueiro para faculdade, e caso ele não estudasse, daria um pé na bunda dele sem o menor remorso. Diante dessa deixa, comecei a falar como ela deveria investir aquele dinheiro e o interesse dela no assunto foi dando sinais que certamente ela se mudaria em breve para o interior de São Paulo junto da mãe e que abriria um consultório de psicologia para finalmente exercer sua profissão. Depois de tanto papo fui na reunião marcada com os funcionários da fazenda e só retornei na hora do jantar. Karen já estava recolhida em seu quarto dormindo com a TV ligada e Dona Candoca havia deixado uma bela moqueca no fogão.

Mesmo a noite o calor era intenso, passei a noite na varanda numa rede como fazia antigamente. Acordei repleto de picadas de mosquitos e Karen atenciosa me deu creminho para passar na pele depois de me taxar de menino tonto da cidade. Mais ou menos pelas nove da manhã o meu cliente chegou ver a fazenda em companhia de seu filho e suas respectivas senhoras. Aquela dupla de gorduchos ficou fascinada com a fazenda e diria que pensaria um pouco mais no negócio. Karen me acompanhou nessa visita pela fazenda, fazia sala para as esposas dos gorduchos que eram bolivianos residentes no Brasil. Passamos o dia nessa empreitada. Após um dia cheio Karen e eu ficamos dormindo na fazenda mais uma vez. Embora não fosse como nos velhos tempos quando dormíamos juntos as escondidas, ao menos dividíamos uma cerveja e conversávamos sobre qualquer assunto de momento ou recordávamos de histórias de nossa família. Mesmo depois de tanto tempo no mato não tinha perdido sua espontaneidade, nem mesmo tinha ficado ignorante e bronca na medida a qual eu achava antes. Parecia que tinha realmente feito as pazes com minha prima maluquinha depois daquela conversa regada a cerveja e fatias de churrasco.

Aqueles dias movimentados me fizeram pensar bem menos sobre Bianca e tudo que tinha se passado, mas mesmo assim aquilo ainda doía como ferida aberta. A cada chapéu que a minha vista batia os olhos a lembrança daquele dia voltava. Pelo jeito o meu trauma de chapéu iria perdurar ainda por algum tempo.

No dia seguinte ao raiar do sol voltamos para a cidade e ajudei Karen a colocar sua casa à venda numa imobiliária. Logo depois disso Alex e o velho libanês já estavam nos esperando no cartório e o negócio finalmente havia terminado. Almoçamos, passamos rapidamente na casa de Karen e depois papai me deu carona em seu aviãozinho pilotado. Seguimos vôo para Sampa. Chegando por lá saí com velhote tomar um lanche e depois disso ele se mandou e eu também cada um seguindo seu próprio destino.

Apesar do cansaço consegui retornar para Curitiba e ao chegar ao meu lar doce lar, afundei na minha cama fofinha e dormi muito sem pensar em mais nada.
 

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